Blog Gêneros Musicais, de autoria de Álaze Gabriel.
Autoria:
Eduardo Henrik Aubert; Doutorando em História – Groupe
d'Anthropologie Historique de l'Occident Medieval/École des Hautes Études en
Sciences Sociales (GAHOM-EHESS)
RESUMO
O presente artigo busca caracterizar as diferentes
posições que a musicologia comparada, na primeira metade do século XX, e a
etnomusicologia, sua herdeira na segunda metade do século, desenvolveram a
respeito do pensamento sobre a música nas culturas que estudaram. Se, em um
primeiro momento, a percepção da (in)existência desse pensamento esteve marcada
pela oposição à teoria musical ocidental, o reconhecimento da diversidade de
seu conteúdo e, depois, de sua forma foi gradualmente conquistando a
disciplina. A tal ponto que hoje se pode perguntar, dialeticamente, se, para
além da diversidade do pensamento sobre a música, não há uma unidade do
pensamento musical como modalidade cognitiva característica da espécie.
Palavras-chave: musicologia comparada, etnomusicologia, teoria
musical, pensamento sobre a música, pensamento musical.
INTRODUÇÃO
Rompendo com os estudos tradicionais de história da
música e de teoria musical, delineia-se, no século XIX, o campo da ciência da
música, ou da musicologia. O grande sentido dessa ruptura é a criação de um
objeto: a música do passado. Ao falar sobre Karl Franz Friedrich Chrysander
(1826-1901), que cunhou a expressão musikalische Wissenschaft
("ciência musical", depois Musikwissenschaft, "ciência da
música", ou "musicologia"), Rafael Bastos caracterizou o
processo da seguinte maneira: "O que esse handelista notório assim
intentava era uma ruptura com a tônica daqueles estudos em seu tempo,
profundamente colada a uma estética do presente. […] A
criação, portanto, do termo musicologia, na segunda metade do século
XIX, parece apontar para um movimento na direção da própria invenção do objeto música
do passado" (Bastos, 1995, pp. 40ss). A criação da música do passado,
alteridade com relação à música do presente, será seguida, no final do século,
da invenção de mais um "outro": a música não ocidental, também abarcada
no campo em expansão da musicologia, sob a denominação de "musicologia
comparada", termo cunhado por Guido Adler em 1885 (Adler, 1885, p. 14).2
Essa dupla alteridade da música ocidental do presente (com relação à música do
passado e à música não ocidental) foi construída com base em algumas premissas
muito fortes, como a distinção entre música de arte e música funcional, a
presença ou a ausência da polifonia, entre outras. Uma delas, que assume papel
especialmente marcante na caracterização das disciplinas, é a posição atribuída
à teoria musical em cada uma dessas "músicas". Vista como um dos
elementos definidores da música ocidental do presente, a teoria musical
inexistiria nas culturas não ocidentais e estaria presente na música ocidental
do passado apenas de forma rudimentar e primitiva, sofrendo uma evolução
gradual em direção ao presente – para um exemplo dessa narrativa, conferir Riemann
(1974). Como disse Steven Feld, "a teoria musical era aceita como uma
realização especial do Ocidente que permitia a 'nós' analisar a 'eles'"
(Feld, 1990, p. 63).
Neste artigo, buscaremos caracterizar as posições
que a musicologia comparada e sua herdeira a partir da década de 50 do século
XX, a etnomusicologia, desenvolveram a respeito do papel da "teoria
musical" (a expressão não é neutra e, como se verá, as alterações de
perspectiva implicam sempre uma redefinição do objeto – "conceito
musical", "pensamento sobre a música", "pensamento
musical" e assim por diante) nos sistemas musicais e culturais que
estudaram, acompanhando aquelas que parecem ser as formulações mais importantes
e suas principais transformações. O problema correlato da posição da teoria
musical na música ocidental anterior ao século XIX não será abordado neste
texto, com vistas a um desenvolvimento futuro.
OS PRIMITIVOS NÃO TÊM TEORIA DA MÚSICA!
A época de ouro da musicologia comparada é
identificada à chamada Escola de Musicologia Comparada de Berlim, no começo do
século XX, e a suas duas grandes personagens, Carl Stumpf (1841-1936) e Erich
Moritz von Hornbostel (1877-1935) (Christensen, 1991, pp. 201-9). Hornbostel,
especialmente, foi uma figura crucial, tanto por seu trabalho pessoal,
constituído por inúmeras publicações que integravam musicologia, psicologia e
antropologia, como pelos discípulos, diretos ou indiretos (Kolinski, Bose,
Herzog), que a ele se associaram e que seriam os formadores da primeira geração
de etnomusicólogos norte-americanos dos meados do século XX. Por essa razão, é
interessante passar em revista algumas das afirmações de Hornbostel a respeito
do pensamento dos nativos sobre a música.
Ainda que, em alguns de seus primeiros trabalhos,
Hornbostel tenha sugerido que algum dia os julgamentos estéticos expressos em
línguas não européias poderiam vir a interessar os musicólogos comparativos, os
métodos que tinha à disposição não permitiam "tirar conclusões confiáveis
sobre a concepção do próprio cantor" (Hornbostel, 1909, p. 782). Adotando,
duas décadas depois, uma posição mais cética, Hornbostel marcava, em relação à
música negra africana, "a amplitude estreita da consciência" que
havia impedido um grupo humano de organizar e utilizar um conjunto de recursos
musicais (id., 1928, p. 38). Do mesmo modo, ao tocar no problema das afinações
instrumentais – que George Herzog, um de seus discípulos não formais,
associaria a teorias musicais nativas, ainda que muito parciais, como veremos
mais adiante –, Hornbostel afirmou mais de uma vez que "mal se poderia
falar de um 'sistema'" (apud Blum, 1991, p. 28).
A exclusão da "teoria musical" do campo
da musicologia comparada é plenamente compreensível no conjunto desses
pressupostos. Afinal, a noção de teoria era afim àquela de sistema, que, no
esquema proposto por Adler em 1885, tinha seu lugar no subcampo da musicologia
sistemática, domínio de estudo da música ocidental do presente. A musicologia
comparada trabalhava, assim, nos quadros das divisões disciplinares – e de seus
pressupostos operantes – tal como esses haviam sido delimitados pela
musicologia alemã do final do século XIX.
Curt Sachs (1881-1959), historiador da arte e da
música, cujo nome é freqüentemente associado ao de Hornbostel devido ao
importante trabalho que escreveram em parceria sobre organologia (Hornbostel
& Sachs, 1914), também subscreve a esse paradigma, afirmando que, na música
"primitiva", "a imitação e a expressão involuntária da emoção
precedem toda a formação consciente do som" (Sachs, 1937, p. 175). Esse
modelo de compreensão da música "primitiva" estava articulado, como
seu negativo, a uma percepção evolutiva, por parte da musicologia, da relação
entre teoria e produto musical. De acordo com Riemann, por exemplo,
passar-se-ia de uma época em que a teoria era "agente do progresso [do
ponto de vista do produto]" para outra, no século XVI, em que ela estaria
subordinada à prática, ao menos do ponto de vista da polifonia (Riemann, 1974,
p. xxi). Se, no caso da música ocidental, há, portanto, uma transformação
evolutiva na ordem de encadeamento dos dois elementos, teoria e prática, no das
culturas não ocidentais, a teoria estaria pura e simplesmente ausente.
Outro nome importante a ser investigado nesse
momento é o de Franz Boas (1858-1942), que manteve correspondência com os
musicólogos comparados da Escola de Berlim, especialmente com Hornbostel, e que
orientou alguns dos nomes que viriam a constituir a primeira geração da
etnomusicologia americana, dentre eles, George Herzog, o discípulo informal de
Hornbostel a que já aludimos, orientador de Bruno Nettl, e Melville Jean
Herskovits, professor de Alan P. Merriam. Boas, fundador da antropologia
cultural americana e crítico combativo do evolucionismo, interessou-se bastante
pela música não ocidental. Em seu trabalho mais importante no que tange ao
estudo da música, Primitive Art (1927), Boas começa por enunciar seus
princípios de investigação. O primeiro deles é a "igualdade fundamental
dos processos mentais em todas as raças e em todas as formas culturais
atuais" (Boas, 1951, p. 1): "não há algo como a 'mente primitiva', um
modo de pensar 'mágico' ou pré-lógico', mas cada indivíduo na sociedade
'primitiva' é um homem, uma mulher, uma criança do mesmo tipo, da mesma maneira
de pensar, sentir e agir que o homem, a mulher ou a criança em nossa própria
sociedade" (id., p. 2). A diferença do "civilizado" seria de
ordem histórica – e o segundo princípio da investigação de Boas é a
"consideração de todo fenômeno cultural como o resultado de acontecimentos
históricos" (id., p. 1). Segundo Boas, "nossa vantagem com relação
aos povos primitivos é a de um maior conhecimento do mundo objetivo, conseguido
pelo trabalho de muitas gerações" (id., p. 4). É a um menor conhecimento
do "mundo objetivo" que devemos, então, associar a seguinte afirmação
de Boas, no capítulo dedicado à literatura, música e dança: "Não
adentrarei mais nesse assunto intricado, pois ainda não se achou um método que
nos permita dizer de forma definitiva o que as pessoas querem cantar
quando entre elas não há uma teoria da música, como ela existe entre nós ou
entre os povos civilizados da Ásia, e quando elas não têm instrumentos
construídos com exatidão" (id., p. 342). Ainda que o homem
"primitivo" não se distinga mentalmente do "civilizado", a
tradição passou a este um conjunto de idéias baseadas em séculos de experimentos,
diferentemente do que se deu com o homem "primitivo" (id., 1939, pp.
201ss). É daí que decorre a existência de um corpo de conhecimentos do mundo
objetivo melhor do que as "classificações inconscientes" dos homens
"primitivos". Não se trata de capacidade ou incapacidade, mas de
imposição da tradição, tanto em um caso como em outro. O resultado, entretanto,
é o de que as idéias dos "primitivos" sobre o mundo – e sobre a
música – são "inteiramente inconscientes" (id., p. 198), o que é
exatamente o contrário da existência de uma teoria da música, expressão que
pressupõe necessariamente um elevado nível de consciência. Temos aqui,
portanto, no campo antropológico, para além do já aludido musicológico, uma
fundamentação para a não existência de uma teoria musical não ocidental
(exceção feita aos povos "civilizados" da Ásia).
George Herzog parece ter sido um dos primeiros
antropólogos-musicólogos – a palavra "etno-musicologia", hifenizada
até 1955, só surge em 1950 (Bastos, 1995, pp. 16-7) – a acenar para a
possibilidade de se falar em teorias musicais com relação às culturas musicais
não ocidentais – querendo, assim, aludir à complexidade do pensamento não
ocidental sobre a música, segundo a concepção corrente de "teoria".
Em um estudo sobre os tambores entre os Jabo na África Ocidental, Herzog
escreveu:
Ainda que essas teorias nativas sejam parciais,
[...] elas demonstram como a terminologia e a teoria técnica podem bem se desenvolver
onde existe um objeto ou um instrumento no qual um sistema de outro modo
abstrato possa ser observado em operação visível; o desenvolvimento da teoria
musical e de um sistema de escalas também está relacionado a observações dos
instrumentos musicais, não da voz cantada ou de fenômenos acústicos no
abstrato. (Herzog, 1945, p. 232)
É interessante notar a correlação aqui estabelecida
entre instrumento e teoria musical, associação já sugerida no trecho que
citamos da obra Primitive Art, de Boas. A correlação está fundamentada,
muito provavelmente, nos trabalhos da musicologia comparada voltados à
comparação de escalas musicais via medição dos tubos de instrumentos de sopro,
notadamente das flautas de Pã, e pode remeter, direta ou indiretamente, aos trabalhos
de Helmholtz dos meados do século XIX.3
Mas, mesmo aqui, trata-se de uma nota marginal e que qualifica as "teorias
nativas" de "parciais". Ainda se está longe da definição de um
objeto de estudo. De fato, onze anos depois, um orientando de Herzog, o
etnomusicólogo Bruno Nettl, que depois viria a se tornar um dos maiores
expoentes da disciplina, afirmava, sem reticências ou reservas, que "na
música primitiva uma escala não existe na mente dos músicos nativos, e então o
musicólogo precisa deduzi-la das melodias" (Nettl, 1956, p. 45). Esse era,
afinal, o senso comum da disciplina.
É curioso, mas bastante compreensível, dados os
pressupostos disciplinares da musicologia comparada, que a declaração mais
direta no sentido do estudo de "teorias musicais nativas" venha de
Marcel Mauss, um antropólogo que jamais se dedicou ao estudo da música, ainda
que eventualmente em sua proposta de análise de "fatos sociais
totais" fizesse menção a ela. Durante conferências realizadas entre 1926 e
1939, Mauss chegou mesmo a fazer um uso explícito da noção de
"teoria": "Nós encontramos nas artes musicais dois elementos: um
elemento sensorial correspondente às noções de ritmo, de equilíbrio, de
contrastes e de harmonia, e um elemento ideal, um elemento de theoria:
[...] a mais simples das artes musicais comporta um elemento de imaginação e de
criação" (Mauss, 1926, p. 82). Mauss referiu-se também – testemunho seguro
de suas leituras dos musicólogos comparados – às flautas de Pã como possíveis
instigadoras do desenvolvimento de uma "teoria nativa" da música:
"Existe uma teoria da música em todo lugar em que existe a flauta de Pã.
Distingue-se o comprimento dos tubos e aprecia-se a altura absoluta de seus
sons, os intervalos" (Mauss, 1926, p. 85). Entretanto, não é daqui que
surgirá uma proposta de análise do pensamento não ocidental sobre a música
(ainda que, em certa medida, os trabalhos de Lévi-Strauss sobre mito e música
possam ser considerados um tipo muito específico de encaminhamento para esse
interesse), mas sim da etnomusicologia americana, na linhagem de Boas.
Referimo-nos à obra de Alan P. Merriam, aluno de Herskovits, que examinaremos
na seqüência.
ELES TÊM CONCEITOS MUSICAIS, MAS TEORIA DA MÚSICA…
Alan P. Merriam (1923-1980) foi possivelmente a
personagem mais influente na constituição da etnomusicologia americana no
século XX, especialmente em razão de seu livro The Anthropology of Music,
de 1964, um vasto ensaio em forma de manual que tem servido até hoje como fonte
de propostas e discussões. Merriam tinha como propósito escrever um livro que
preenchesse uma lacuna, pois, em um campo que, segundo ele, se formava na
confluência da musicologia e da antropologia, muito menos atenção havia sido
dada à antropologia: "o fato é que as técnicas musicológicas foram
aplicadas a um número surpreendente de músicas do mundo, com resultados
significativos, ainda que certamente não definitivos; as questões relativas ao
comportamento humano e à ideação em conjunto com a música mal foram
formuladas" (Merriam, 1980, p. viii). Desse ponto de vista, as idéias
relativas à música, os "conceitos musicais", como os chamou, pareciam
fundamentais. Mas, como se vê, a noção de "conceitos" surge
explicitamente vinculada ao aporte antropológico dessa confluência que
definiria a etnomusicologia, e não do lado musicológico, em que a noção de
teoria musical permaneceu fortemente impregnada.
Para compreender essa noção de "conceitos
musicais" na obra de Merriam, é preciso examinar alguns pontos de sua
contribuição à disciplina. Em primeiro lugar, deve-se atentar para o quadro
geral de sua proposta, o "modelo Merriam", como poderíamos chamá-lo.
No referido The Anthropology of Music, Merriam busca formular um campo
de estudos como interesse específico no seio da etnomusicologia, uma espécie de
subcampo, denominado exatamente "antropologia da música". Esse
subcampo seria dedicado a um estudo em três níveis: "a conceituação sobre
a música, o comportamento em relação à música e o som musical propriamente
dito" (id., p. 32). Essa tríade é fundamental, pois envolve um
direcionamento específico, o conceito produzindo o comportamento (divisível em
três níveis, físico, social e verbal), e este produzindo o som. Trata-se de um
modelo de níveis superpostos, em um influxo unidirecional. Delineia-se aqui um
encadeamento causal, e no gatilho do processo está precisamente o conceito. Daí
que Charles Keil tenha classificado a proposta de Merriam como idealista (Keil,
1979, p. 6). Cabe notar, entretanto, que Anthony Seeger se opôs à
"redução" do pensamento multifacetado de Merriam a esquemas rígidos e
simples (Seeger, 1987a), e é fato que o "modelo Merriam", como
veremos, jamais apareceu de forma tão esquemática na prática etnomusicológica
de Merriam.
Um segundo elemento para o qual gostaríamos de
chamar atenção é a existência, para Merriam, de uma distinção entre
"conceitos" e "teoria musical" propriamente dita:
"Nossos interesses aqui não estão voltados para as distinções que as
pessoas possam fazer entre terças maiores e menores, por exemplo, mas antes
para qual é a natureza da música, como ela se encaixa na sociedade como parte
dos fenômenos existentes da vida, e como ela é organizada conceitualmente pelo
povo que a usa e a organiza" (id., p. 63). Trata-se de proposta que
distingue, de um lado, os elementos tradicionais da teoria musical ocidental e,
de outro, um campo, igualmente excludente, dos "conceitos musicais",
entendidos, sobretudo, como uma espécie de metafísica da música. Trata-se, como
se vê, de uma categorização a priori muito fundamentada em uma
construção ocidental, segundo a qual "idéia" é tudo aquilo que não é
"teoria" musical – e vice-versa –, construção que pressupõe uma
divisão entre discurso técnico (sobre escalas, tons, acordes, intervalos etc.)
e metafísico ou funcional (sobre a natureza da música, seus efeitos e suas
funções, entre outros), que é muito própria da cultura musical do Ocidente, em
que o primeiro tipo de discurso é o apanágio de um grupo de especialistas.
Conforme veremos, essa distinção de duas esferas de
idealização, estrutural na obra de Merriam, foi na seqüência criticada por
diversos autores, na medida em que, ao invés de questionar os pressupostos
devidos aos quais a musicologia comparada negara a existência de uma
"teoria musical" não ocidental, domínio dito "técnico" e
exclusivo do Ocidente, ela a reforçava. Aqui fica bastante claro que Merriam
está de fato inserido naquele "paradigma dilemático" que dominou
longamente a idéia que se fazia da etnomusicologia e de fato direcionou, em
grande parte, o seu desenvolvimento: de um lado, a proposta que enfatizava a
musicologia – e, aqui, já que o discurso sobre a música é entendido
fundamentalmente como linguagem técnica de intervalos, escalas e modos, a
"teoria musical" não encontrava lugar, o objeto de estudo
reduzindo-se ao produto musical "bruto" –, de outro, a proposta de
Merriam, que enfatizava a antropologia – e, aqui, como a ênfase era na
"música na cultura" (id., p. 6), essa era atrelada a um conjunto de
conceitos metafísicos, atinentes à generalidade da cultura, e não à
especificidade da música advogada pelos protagonistas da vertente mais
musicológica da disciplina.
Na prática etnomusicológica, a proposta de Merriam
redundou, mais que em uma efetiva articulação explicativa, em uma sobreposição
temática da esfera dos conceitos musicais com as outras duas esferas de seu
modelo (o comportamento e o som). Isso fica bastante claro na monografia
escrita por Merriam três anos depois (1967), The Ethnomusicology of the
Flathead Indians. O livro está dividido em duas partes: "A etnografia
da música Flathead" e "Canções e análise". A primeira inicia com
as idéias e envereda pelos comportamentos, e a segunda trata do produto
musical. Repete-se aqui a contraposição entre duas modalidades ideacionais, uma
técnica (relativa à especificidade da música), não necessariamente presente nas
culturas nativas, a outra amplamente difundida (atinente à generalidade da
cultura):
Todas as pessoas, não importa em que cultura, devem
ser capazes de localizar a música firmemente no contexto da totalidade de suas
crenças, experiências e atividades, pois, sem esses laços, a música não pode
existir. Isso significa que tem de haver um corpo de teoria ligado a qualquer
sistema de música – não necessariamente uma teoria da estrutura do som musical,
apesar de ela também poder estar presente, mas antes uma teoria do que a música
é, e como ela é coordenada com o ambiente total, tanto natural como cultural,
em que o homem se movimenta. (Merriam, 1967, p. 3)
Aqui a associação entre verbalização e conceituação
– noções centrais no livro de 1964 – é enfatizada, entretanto, de modo que o
postulado estritamente causal de The Anthropology of Music não assuma
uma proeminência discursiva. De fato, para Merriam, "assim como eles
verbalizam relativamente pouco sobre os critérios para um bom cantor, e, quando
este é o caso, apenas em um plano não técnico, os Flathead também não
conceituam sua música de forma a permitir discussões técnicas de estrutura
formal" (id., p. 41).
Como veremos em breve, a obra de Merriam foi alvo
de diversas críticas, e vários elementos de seu "modelo" foram
reavaliados ao longo do tempo. Por ora, vamos abrir um parêntese e identificar
outro estudioso, John Blacking (1928-1990), contemporâneo de Merriam, e que,
durante seu doutoramento, se correspondeu com este, vendo seu próprio trabalho
em grande parte como uma "antropologia da música". Segundo Blacking
em uma entrevista de 1989, "apenas em 1964, o ano em que saiu o The
Anthropology of Music de Merriam, eu vi alguma diferença: muito embora eu
admirasse o livro, e muito embora eu ainda apoiasse praticamente tudo o que
Merriam escreveu nele, eu sentia que não havia no livro atenção suficiente ao
lado musical" (Blacking & Howard, 1991, p. 60). Em seu livro sobre as
canções das crianças venda, de 1967, mesmo ano do estudo de Merriam sobre os
Flathead, Blacking, abrindo o prefácio de seu livro com uma referência a
Merriam, tomava uma posição sutil mas crucialmente distinta: "O importante
livro de Alan Merriam, The Anthropology of Music, enfatiza a necessidade
de se estudar a música na cultura. Decorre daí que, se a música for considerada
como ação humana, o som da música não pode mais ser analisado
independentemente, mas deve ser estudado como som na cultura" (Blacking,
1995a, p. 5). Para Blacking, não se trata de trabalhar na sobreposição do
antropológico e do musicológico, como na etnografia de Merriam, mas de entender
a imbricação desses domínios para além do "paradigma dilemático".
Em sua obra, Blacking dedicou algumas páginas a
"Algumas definições e conceitos básicos da música venda" (id., pp.
16-19). Nelas fica bastante evidente que se está diante de um modelo que encara
os "conceitos" musicais de forma bem diferente da de Merriam. Em
primeiro lugar, "definições" e "conceitos" aparecem juntos,
sem distinção causal – precisamente a correlação entre verbalização e conceito,
que, em The Anthropology of Music, se relaciona como produto e produtor
respectivamente. Em segundo, não existe privilégio a priori de uma
terminologia não técnica por oposição a uma terminologia técnica, ou dois
níveis de ideação. Afinal, Blacking está interessado em incorporar em seu
estudo o som musical e a análise musical das peças. Em terceiro, forma e
função, ou situação, estão intimamente relacionados: "A música é
essencialmente uma atividade social" (id., p. 17). Em quarto, há
uma inversão, por assim dizer, do direcionamento de Merriam – conceito →
(comportamento) → som. Para Blacking, em certa medida (pois não generaliza a
afirmação), o som gera o conceito: "Porque sua música consiste basicamente
em repetições de padrões básicos, eles não têm um conceito de pausas na
performance" (ibid.). Em quinto, Blacking não sobrepõe conceitos nativos a
conceitos ocidentais, mas relaciona uns com os outros, verificando
correspondências mais que reconstruindo sistemas em sua inteireza. É importante
atentar para essas especificidades da obra de Blacking e para sua precoce
contraposição a Merriam, pois, tratando-se de obra bem menos lida que a de
Merriam, ela não suscitou tantos comentários diretos. Porém, ela levanta
questões e sugere elementos de um modelo que será muito importante a partir da
década de 1980, como se verá mais adiante. Retomaremos a contribuição de
Blacking para a etnomusicologia no último item deste texto.
OS NATIVOS TÊM TEORIAS COMPLEXAS, COMO MOSTRAM SUAS
ELABORADAS TAXONOMIAS MUSICAIS...
Inovadora e ousada, a obra de Merriam calou fundo o
campo então em constituição da etnomusicologia norte-americana, como testemunha
a recepção, extremamente crítica em muitos pontos, de The Anthropology of
Music e de The Ethnomusicology of the Flathead Indians. É o caso de
uma resenha escrita por William Powers ao livro sobre os Flathead, em 1970, em
que a questão dos "conceitos musicais" foi especialmente destacada
(Powers, 1970). Sem negar a importância dos "conceitos musicais",
Powers opõe-se, contudo, à exclusão do pensamento técnico sobre a música do
horizonte de Merriam e, nessa crítica, detém-se especificamente sobre a questão
da correlação entre conceituação e verbalização tal como vista por Merriam:
Ficamos curiosos para saber se a
"inabilidade" para verbalizar sobre a música não pode ser resultado
da maneira como as questões musicais foram formuladas aos informantes. Além do
mais, se o pesquisador não fala a língua nativa, ele não está em condições de
ter certeza se uma população ágrafa é ou não capaz de verbalizar sobre a música
em um sentido técnico [...]. Eu concordaria com Merriam em que a maior parte
dos índios não verbalizam sobre sua música em inglês nem se articulam bem sobre
o canto quando respondem a questões que não podem ser respondidas em seus
próprios contextos culturais. A isso eu acrescentaria que os intérpretes também
têm dificuldade em se expressar tanto em sua própria língua como em inglês
sobre muitas facetas de sua cultura tradicional, dependendo grandemente de seu
nível de aculturação. Mas eu não posso concordar com que os Flathead, ou
quaisquer outros grupos de índios que são capazes de formular extensas
taxonomias de fenômenos naturais, não sejam capazes de verbalizar
satisfatoriamente sobre sua música de acordo com suas necessidades sociais.
(id., p. 72)
Critica-se aqui a distinção postulada por Merriam
entre conceituação e verbalização, que marginaliza, de certo modo, a mediação
do pensamento pela língua. O movimento em que a etnomusicologia se engajará na
década de 1970 é exatamente o oposto, o de colocar essa mediação no centro de
seus interesses. As taxonomias e a importância dada ao uso da língua nativa na
pesquisa etnográfica enfatizam, na resenha de Powers, a centralidade da
expressão verbal como porta de entrada para a compreensão de uma cultura e dão
testemunho da ligação do autor, especialista dos índios Lakota, com a emergente
antropologia cognitiva. Esse campo resulta da associação da antropologia com a
lingüística, e é preocupado, de acordo com um de seus primeiros e mais
influentes manuais, com a organização mental do mundo pelos nativos tal qual
ela pode ser percebida pela linguagem e objetivada em modelos taxonômicos
(Tyler, 1969). Uma conseqüência importante dessa abordagem é que,
preocupando-se com a sistematização do pensamento na língua, ela acaba
permitindo que eventualmente a própria noção de teoria musical, que está
associada a certa sistematicidade e a uma organização objetiva das categorias,
entre finalmente no campo da etnomusicologia.
A centralidade da mediação da língua está associada
a uma mudança de perspectiva mais global, que transparece no seguinte trecho da
resenha de Powers: "quando se trata de analisar tais fenômenos como a
verbalização da música e conceitos de estrutura formal e estética, há uma maior
necessidade para os etnomusicólogos se 'de-culturarem' da orientação ocidental
e seguirem a dica dos proponentes da etnociência, isto é, 'pensarem como
índios'" (Powers, 1970, p. 70). Aqui se delineiam os termos do debate
êmico/ético, que dominaria a cena antropológica nas próximas décadas. A
primeira posição defende que se adote um "ponto de vista nativo", e a
segunda que se assuma o ponto de vista externo, ocidental (Headland, Pike &
Harris, 1990). A defesa generalizada da adoção de um ponto de vista êmico pela
etnomusicologia de vertente preponderantemente antropológica seria decisiva no
estabelecimento de um campo de estudos de "teorias musicais nativas",
como esses estudos passaram a se denominar a partir de então. Nesse sentido, a
recepção do trabalho de Merriam defronta-se imediatamente com as dificuldades
levantadas por transformações de fundo na antropologia.
Um importante trabalho que participa desse mesmo
movimento global da disciplina é o Glossary of Hausa Music and Its Social
Contexts, de David W. Ames e Anthony V. King, de 1971, e é compreensível
que Jones veja no livro uma contribuição não apenas a etnomusicólogos, mas
também a lingüistas e lexicógrafos, já que a importância da mediação da língua
se torna aqui a coluna vertebral do trabalho (Jones, 1973). O objetivo dos
autores não é, entretanto, o de montar um simples dicionário, como se poderia
imaginar pelo título. Eles pretendem "fazer deste mais do que um glossário
técnico de instrumentos musicais e produção sonora; de fato, ele acabou por se
tornar um tipo de etnografia abreviada da vida musical, em que o mesmo peso é
dado ao contexto sociocultural da performance musical" (Ames & King,
1971, p. vii). O glossário está dividido em cinco seções: (I)
"Instrumentos e suas partes"; (II) "Artistas
profissionais"; (III) "Patronos"; (IV) "Ocasiões"; (V)
"Performance musical". A perspectiva é a de, por meio da língua
hausa, descortinar as categorias nativas de pensamento sobre a música, isto é,
partir da língua para chegar ao pensamento – o que é, no mínimo, uma inversão
metodológica do encadeamento ontológico proposto por Merriam. Trata-se,
ademais, como marcou Nettl, de um quadro essencialmente êmico do nicho que a
música ocupa nessa cultura, ainda que certas classificações sejam importadas
"de fora" – caso da classificação dos instrumentos musicais, que
segue a sistemática de Hornbostel e Sachs (Nettl, 1983, pp. 143-4).
Um dos etnomusicólogos mais destacados na defesa do
estudo das "teorias musicais nativas" foi Hugo Zemp, que trabalhou
primeiramente com os Dan, na Costa do Marfim, e depois com os 'Are'are, na
Melanésia. Logo em seu primeiro livro, Musique dan: la musique dans la
pensée et la vie sociale d'une société africaine, de 1971, os
"conceitos musicais" assumem papel preponderante.4
Nesse trabalho, dividido em três partes – "Instrumentos de música",
"Concepções e verbalizações" e "Contexto social" –, a
segunda parte insiste, já em seu título, na correlação entre conceituação e
verbalização. Ao explicar essa parte do livro na introdução, Zemp a define da
seguinte maneira: "nós estudaremos as concepções relativas à música: qual
é – segundo os Dan – a natureza da música, como ela está integrada na cultura
como uma parte dos fenômenos da vida, como ela é conceituada" (Zemp, 1971,
p. 13). Como se vê, tudo aquilo que Merriam definira como "conceito
musical" por oposição à "teoria", no sentido de pensamento
técnico, encontra aqui um lugar. Na seqüência, naturalmente, Zemp cita o livro
de Merriam, The Anthropology of Music, no momento em que o antropólogo
chama a atenção para a distinção entre música e ruído (cf. Merriam, 1980, p.
63), e aqui se delineiam as diferenças. Diz Zemp:
Mas não basta que o antropólogo pergunte em sua
língua aos membros de uma sociedade como eles concebem essa distinção. É
necessário, primeiramente, determinar se termos que cobrem essas noções
européias de "música" e de "ruído" existem e, sobretudo, se
elas possuem o mesmo campo semântico que os termos da língua utilizada pelo
pesquisador, o que é pouco provável para línguas não européias. É por isso que
nós abrimos, na nossa obra, a parte consagrada às concepções com um inventário
do vocabulário dan de interesse musical. O perigo de compreender mal as
informações ou de as reinterpretar segundo uma concepção eurocêntrica da música
é particularmente grande nesse domínio. Se nós nos preocupamos sempre em
colocar os diferentes termos em seu contexto lingüístico e em traduzir as
expressões dan literalmente, citando o texto original, é para ficarmos o mais
próximos possível do pensamento dan, mesmo se nos arriscamos a fatigar
demasiadamente o leitor, que não é nem dan nem semanticista. (Zemp, 1971, p.
13)
Vê-se aqui como é mais uma vez a centralidade da
mediação da língua que se impõe, postulado metodológico que se desdobra em
perspectiva filosófica, segundo a qual o pesquisador tem de se desvestir de
suas categorias (música e ruído, por exemplo) para entender a outra cultura em
sua alteridade radical. É preciso, em outros termos, que o pesquisador se dispa
de seu ponto de vista e busque assumir o ponto de vista do outro.
Ao longo da década de 1970, Zemp se deterá sobre
seu distanciamento com relação a Merriam e o precisará. Em artigo de 1978,
"'Are'Are Classification of Musical Types and Instruments", Zemp
insistirá na arbitrariedade da separação entre música e ruído tal qual
formulada por Merriam: "Ao estudar conceitos de música, o primeiro
imperativo é usar a língua nativa para a investigação" (id., 1978, p. 59).
E, naturalmente, à centralidade da mediação da língua, associa-se a perspectiva
êmica: "Esses traços não são empregados artificialmente a partir de fora,
mas correspondem a conceitos inerentes ao pensamento 'are'are, que são
expressos freqüentemente no vocabulário dos músicos" (id., p. 61). O nexo
entre língua e pensamento é muito estreito, e negligenciá-lo seria incorrer
certamente em etnocentrismo, fantasma que esses pesquisadores buscam, acima de
tudo, espantar. No ano seguinte (1979), Zemp publica outro artigo sobre os 'Are'are
na Ethnomusicology, "Aspects of 'Are'Are Musical Theory".
Aqui, Zemp acaba por extrair da população toda uma complexa "teoria
musical", assim nomeada, aliás, no título do artigo. No final do texto,
Zemp dedica algumas páginas à crítica da postura de Merriam, pondo-se a tratar
das relações entre a verbalização e os conceitos e de como extrair esses
elementos do trabalho de campo. É importante ressaltar que, aqui, não se trata
mais de "conceitos musicais", como em Merriam, mas de uma "teoria
musical", estruturada, complexa e verbalizada. Conclui Zemp:
"Oceania, África [...] isso significa que talvez a teoria musical não seja
um privilégio das 'músicas artísticas' das assim chamadas 'civilizações
elevadas' da Europa e da Ásia, como muitos musicólogos (com ou sem o prefixo
etno-) ainda defendem hoje? O título deste artigo deixa clara a nossa
posição" (id., p. 34). A sistematicidade metodológica, com suas taxonomias
complexas, está casada aqui com o postulado de uma sistematicidade do
pensamento dos nativos sobre a música, que acaba por ser vista como o
fundamento ontológico dessa metodologia. Afinal, constroem-se taxonomias
lingüísticas porque o pensamento nativo é correspondentemente sistemático, ou o
pensamento nativo é visto como sistemático, no sentido taxonômico, em função da
metodologia adotada?
Esses trabalhos, com uma ênfase formalista
importante, associada também à voga do estruturalismo na década de 1970 – Zemp
reconhece explicitamente, em seu trabalho sobre a música dan, a importância dos
seminários de Lévi-Strauss a que assistiu (id., 1971, p. 15) –, são todos de
forte inspiração antropológica e pouco se ocupam do lado musicológico do
"paradigma dilemático". Porém, mesmo esse espectro da pesquisa
etnomusicológica sofreu, na década de 1970, o impacto da preocupação com as
"teorias musicais nativas". É o caso dos trabalhos de Gerhard Kubik
reunidos nos dois volumes de seu Theory of African Music. Nos diversos
artigos, Kubik está preocupado em extrair uma teoria musical de seus
informantes que dê conta da estrutura musical das peças. Ele buscou
freqüentemente a verbalização dessas categorias, mas não as encontrou quase
nunca no que respeita à "estrutura musical", que lhe interessava
estudar. Kubik chega a supor: "Regras prescritivas para a composição devem
ter existido no passado. Elas devem ter sido verbalizadas por alguns dos
antigos compositores e seguidas pela maioria como normas geralmente aceitas de
comportamento composicional entre as famílias de músicos responsáveis pela
música de corte" (Kubik, 1994, v. 1, p. 266). Freqüentemente, Kubik
deduziu os "conceitos" da música africana dos atos, da educação, da
performance, e não das palavras, mas – e é aqui que se revela o impacto da
corrente das "teorias musicais nativas" mesmo no campo mais
musicológico da disciplina – ele buscou encontrá-las: "Os termos luganda,
não importa quão descritivos das partes individuais, oferecem pouca indicação
quanto a suas características estruturais. Portanto, eu esboçarei abaixo as
principais características das duas partes básicas na música amadinda, baseado
em minhas próprias observações em campo" (id., v. 1, p. 275). Assim, Kubik
é freqüentemente levado a uma abordagem ética, mas sua tentativa repetida, ao
longo dos ensaios, de partir das possibilidades êmicas revela muito a respeito
do impacto da constituição de um campo de interesse pelas "teorias
musicais nativas" na etnomusicologia.
TAXONOMIA? MAS COMO OS NATIVOS PENSAM A MÚSICA?
O primado lingüístico associado à antropologia
cognitiva vai se apagando, ou ao menos virando objeto de polêmica, conforme a
década de 1970 vai se aproximando de seu fim. É de 1978 que data um inovador
trabalho etnomusicológico, o livro Tiv Song, de Charles Keil, em que
estão apontados muitos dos caminhos que a etnomusicologia trilharia na década
seguinte. Os cinco capítulos do livro foram escritos entre 1966 e 1973 e
mantidos praticamente sem revisão quando da publicação. Isso faz do livro,
escrito por um autor que se mostra um leitor ávido do que foi sendo publicado
pela etnomusicologia e pela teoria antropológica, um interessante
"termômetro" de transformações mais gerais da disciplina. Os
primeiros quatro capítulos, segundo o próprio Keil, "exemplificam um
estudo idealista [...], aprendido mais diretamente da versão da realidade de Alan
Merriam, dos-conceitos-ao-comportamento-ao-produto, e das visões de Clifford
Geertz e David Schneider dos sistemas culturais flutuando simbolicamente acima
dos eventos da vida cotidiana" (Keil, 1979, p. 6). Daí que seu primeiro
capítulo se dedique – e assim vemos que, seja idealista ou não, o trabalho de
Keil não segue exatamente o "modelo" de Merriam, para quem a
verbalização é posterior à conceituação – à terminologia tiv, o segundo às
narrativas tradicionais em que a música desempenha papel importante, o terceiro
à vida de compositores e o quarto à técnica e ao estilo. Já no quinto capítulo,
Keil identifica uma tendência de se tornar mais e mais
"materialista", "alguém que acredita que os sistemas culturais
são organizados, desorganizados e reorganizados por forças
socioeconômicas" (id., p. 7). Daí que este último capítulo seja distinto
dos demais, ao inserir as canções tiv no mundo social de forma marcada.
Na primeira perspectiva, entendemos o primeiro
capítulo de Keil, "A terminologia musical", como um desenvolvimento
específico da crítica cognitiva a Merriam – mais que como um estudo em perfeita
consonância com as propostas do último –, insistindo na importância da língua e
da perspectiva êmica. De fato, para Keil, seguindo Janheiz Jahn, "o equivalente
de uma estética ou de uma 'ideologia da expressão' está enraizado em uma língua
africana" (id., p. 26). E, com efeito, logo em seguida, Keil critica
Merriam por sua desatenção para com a terminologia (id., pp. 28-9). A
perspectiva êmica é explícita: "a 'música' [notem-se as aspas] tiv deve
ser analisada em seus próprios termos" (id., p. 47).
O capítulo cinco, de outro lado, abre-se – sempre
com a preocupação de desvendar as categorias tiv em um ponto de vista êmico –
interessado em apontar para uma "teoria da expressão tiv", buscando
"virar de cabeça para baixo a teoria, o método e os modelos etnocêntricos
de Lévi-Strauss, substituindo seus quadros, tabelas e paradigmas estáticos, ex
cathedra, por uma forma de compreender particularidades dinâmicas em contexto"
(id., p. 183). O que Keil busca aqui é entender o significado da canção tiv em
contexto como um sistema expressivo que está articulado às situações
específicas a que os significados estão associados, não em função de uma
gramática musical que sobrevoa a vida social. Seja ou não bem-sucedido,5
Keil aponta, neste último capítulo, para algumas das preocupações que se
manifestariam em seguida no estudo das "teorias musicais nativas" – e
que, aos poucos, conduziriam à própria reconfiguração do objeto. O grande
problema parece ser o de que aquilo que identifica como "idealismo" e
"materialismo" surge como posturas antinômicas no interior de seu
livro, dificultando a conciliação interna do trabalho. Daí que os demais
estudos que aparecem a partir de então, e que manifestam a mesma preocupação
social com a compreensão da música do ponto de vista do nativo, não condenem o
estruturalismo de Lévi-Strauss, por exemplo, mas busquem combiná-lo com outras
referências.
Um estudo escrito logo após o de Keil, mas
publicado um pouco antes dele, é A musicológica kamayurá: para uma
antropologia da comunicação no Alto-Xingu, de Rafael José de Menezes Bastos,
dissertação de mestrado defendida na Universidade de Brasília em 1976 e
publicada em forma de livro em 1978. O objeto da dissertação é "o
metassistema de cobertura verbal do sistema musical dos índios kamayurá do
Alto-Xingu; metassistema este que inclui, basicamente, classificação e
nomenclatura das coisas musicais" (Bastos, 1978, p. 15). Trata-se,
declaradamente, de um primeiro passo de uma pesquisa que pretende se desdobrar
em doutorado. Na primeira fase da pesquisa, Rafael Bastos tem a intenção de
analisar o "falar sobre música", enquanto, no doutorado, pretende
tratar do "fazer música". Trata-se de um estudo da música do ponto de
vista "verbal-cognitivo", em que o autor é bastante explícito sobre
suas referências teóricas: a antropologia cognitiva e o estruturalismo. Em sua
introdução teórica, Bastos condena a postura, segundo ele prevalecente,
[...] antinômica, dualista, entre expressão e
conteúdo musicais, avalizada não somente, em particular, pela etnomusicologia,
mas também pela antropologia como área abrangente, [que] tem sido elaborada de
muitas e diferentes maneiras, segundo, no entanto, três direções principais. A
primeira delas se contém no estudo da primeira parte do dilema, a segunda, da
segunda, a terceira, enfim, tentando a pura e simples justaposição de ambas.
(id., p. 38)
No primeiro grupo, os expoentes seriam Mantle Hood
e Mieczislav Kolinski, no segundo, Alan Lomax, e, no terceiro, Alan Merriam. E,
aqui, realiza-se uma crítica ao trabalho de Merriam sobre os índios Flathead,
centrada na divisão do livro em duas partes justapostas, e não integradas. Diz
Bastos: "Se bem que o trabalho evidencie o pleno domínio pelo autor, em
separado, dos dois objetos de sua análise, a impressão crucial que aqui se leva
é a de uma desconcatenação essencial entre os mesmos, desconcatenação esta que
acaba, dramaticamente, por deixar claro como Merriam, ao mesmo tempo em que se
esforça por superar o dilema, dele simplesmente não consegue fugir, porque
primordialmente nele se amarra" (id., pp. 40-1). Mas a crítica se tece em
termos distintos daqueles que pudemos acompanhar em Powers ou Zemp,
especialmente no que tange à relação com a lingüística, que assumia, como
vimos, um papel fundamental nesses autores. Para Bastos,
[...] a língua falada, tomada como modelo por
excelência da linguagem, ela estando sustentada nos planos de expressão e de
conteúdo, na cognição como forma de conhecimento e, particularmente, no plano
de conteúdo, tendo a referência como inclinação básica, a transposição desse
modelo para o estudo da música só pôde trazer o aprisionamento desta,
notoriamente uma linguagem essencialmente não referencial, onde a cognição só
aparece no plano expressivo, o afeto e a psicomotricidade constituindo sua
vocação semântica maior. (id., p. 43)
O primado da língua como mediação para o pensamento
é posto em causa e, como proposta alternativa, Rafael Bastos sugere uma
abordagem do objeto em função da antropologia da comunicação, tal qual
preconizada por Dell Hymes. A referência aqui é bastante importante, dada a
crítica de Hymes à lingüística (tal qual aquela que inspirara a antropologia
cognitiva), em que a língua está dissociada de seu contexto comunicativo.
Segundo Hymes, em texto que busca definir as bases de sua "etnografia da
comunicação", "a ênfase da abordagem presente é em comunidades
organizadas como sistemas de eventos comunicativos" (Hymes, 1974, p. 17).
O objeto aqui é social, e, por essa via, Bastos se mostra afinado com a mesma
preocupação que guiara Keil no último capítulo de Tiv Song.
Estudando o caso do Alto-Xingu, o trabalho de
Rafael Bastos se centrará mais especificamente na noção de ritual como forma de
tentar dar conta dessa preocupação com os contextos comunicativos. Apesar de a
dissertação se centrar no problema do "falar musical" – mais que no
do pensar – e não no do fazer, tem-se aqui uma proposta que objetiva
fundamentar uma análise ampla do papel da música nessas sociedades. Nesse
panorama, o dilema verbal-conceitual inexiste, ao passo que a dimensão social
do "falar sobre música", como parte integrante da comunicação, está
acentuada. Sobre este último ponto, diz Rafael Bastos:
Conforme se verá no capítulo III desta tese –
basicamente a parte propriamente etnocientífica dela –, o que essa afirmação
técnica me permitiu foi o levantamento de um sistema verbal-cognitivo altamente
aceitável em termos sociais, isto na medida em que, propiciando ele o discurso
lingüístico sobre a música, torna possível a comunicação entre os membros da
sociedade kamayurá no que a isso diz respeito – e, para o Kamayurá, a música é
tema crucial –, salientando-se aqui o plano da socialização. (Bastos, 1978, p.
48)
Outra monografia a que se deve chamar atenção é Sound
and Sentiment: Birds, Weeping, Poetics, and Song in Kaluli Expression, de
Steven Feld, publicada pela primeira vez em 1982, com base na tese de
doutoramento defendida na Universidade de Indiana em 1979. A monografia está
centrada no estudo dos Kaluli, população que habita a floresta tropical nas
terras altas ao sul de Papua Nova-Guiné. O objetivo do autor é realizar um
"estudo do som como um sistema cultural, isto é, um sistema de
símbolos" (Feld, 1990, p. 3). O estudo de Feld se desenvolveu com base na
percepção daquilo que ele chama de um padrão recorrente em modalidades sonoras
diversas entre os Kaluli, especificamente o choro, a música vocal e a poética.
Para o autor, essas modalidades estariam todas integradas por uma referência
comum: "A tese deste trabalho é de que as modalidades expressivas kaluli
de choro, poética e música vocal, em sua estrutura musical e textual, são
representações espelhadas do círculo simbólico construído pelo mito 'o menino
que se tornou um pássaro muni'" (id., p. 14).
Um estudo puramente ideacional portanto? Feld
nomeia diretamente suas principais referências teóricas de forma a sugerir uma
resposta negativa: o estruturalismo de Lévi-Strauss, a descrição densa de
Geertz e a antropologia da comunicação de Hymes (ibid.). Para Feld, a
importância de integrar essas referências reside no seguinte: "parece-me
[...] que é necessário integrar o estudo de como os símbolos são logicamente
relacionados [estruturalismo] com o estudo de como eles são formulados e
desempenhados (performed) na experiência cultural. Para uma tal
integração, eu me volto aos pontos de vista desenvolvidos por Dell Hymes sobre
a etnografia da comunicação" (id., p. 15). Essa perspectiva distancia Feld
tanto do trabalho de Merriam (que, como já vimos, estabelecia uma separação
entre o estudo do conteúdo e o da forma, seja verbal, seja do produto musical)
como das propostas mais centradas no modelo da antropologia cognitiva, como
Zemp. E, conforme o estudo de Rafael Bastos sobre os Kamayurá, com quem
partilha a referência a Hymes, trata-se de enfatizar a dimensão da comunicação,
dos significados em seus contextos sociais particulares, nas performances
(rituais ou não) em que eles são ativados. Diz o autor:
Os recursos comunicativos dos Kaluli são abordados,
seguindo Hymes, como padrões lógicos de material simbólico que não existem em
si mesmos, mas como um meio de ativar e trazer à tona relações sociais
significativas por meio de expressão estruturada. Decorre dessa premissa a
noção de que a explicação de uma escolha sintática, de uma alteração
fonológica, de um conjunto lexical, de uma frase melódica ou de um padrão
métrico não são atividades destinadas a reificar a forma lingüística ou
musical, mas estão antes preocupadas em demonstrar como capacidades
comunicativas estão envolvidas em uma construção cultural do padrão. (id., p.
16)
É importante marcar uma diferença fundamental com
relação ao modelo analítico de Merriam. Feld, que o cita, expressa seu
descontentamento com a pouca atenção dada à "teoria nativa": "Eu
há muito tempo me sinto intelectualmente desconfortável com tais idéias, assumindo
que, onde quer que haja música, há algum tipo de teoria subjacente a sua
produção e a seu significado" (id., p. 163). Além disso, ao enfatizar o
aspecto social do "pensar nativo sobre o som" (e aqui não se trata
apenas de música), Feld desfaz a unilinearidade dos três níveis de análise de
Merriam, mostrando que, tanto quanto os conceitos produzem música, a música
também pode levar à construção do sentido e do comportamento. Afinal, como
descreve pacientemente Feld, entre os Kaluli, tanto quanto a tristeza leva as mulheres
a cantarem nos rituais funerários, o canto leva os homens à tristeza, e esta a
um choro que também é sonorização. Os influxos e as determinações mútuas ganham
espaço em relação à unilinearidade causal.
Uma quarta pesquisa a se fazer referência é a de
Ruth Stone entre os Kpelle da Libéria. Tendo defendido, em 1979, a tese de
doutoramento denominada Communication and Interaction Processes in Music
Events among the Kpelle of Liberia, também na Universidade de Indiana, Ruth
Stone a publicou, em forma revisada, em 1982, com o nome Let the Inside Be
Sweet: the Interpretation of Music Event among the Kpelle of Libéria. No
livro, cujos primeiros três capítulos (de um total de seis) são destinados à
discussão teórica e à contraposição de paradigmas, Stone é bastante explícita
quanto a seu referencial teórico, destinado, em última instância, a superar o
"paradigma dilemático" e a unificar as abordagens do estudo da música
como "som" e de seu estudo como "comportamento". Ruth Stone
define o "evento musical", seu quadro analítico, da seguinte forma:
"aquela interação da qual os participantes derivam significado. Alcança-se
o estudo da música processualmente ao se analisar os componentes de transmissão
e de recepção do processo interpretativo" (Stone, 1982, p. 34).
Ruth Stone está trabalhando aqui com dois
referenciais importantes: o interacionismo simbólico e a teoria da comunicação
semiótico-cibernética (Stone & Stone, 1981, pp. 215-16). Interessa-lhe
mostrar que a significação se dá de forma dinâmica no decurso de eventos
determinados: "O significado não é algo inerente a um objeto, evento,
símbolo ou qualquer outro fenômeno; o significado é construído com base nesses
fenômenos" (id., p. 216). Em uma das afirmações em que condensa sua
proposta teórica, Stone diz que "a construção do significado nos eventos
musicais envolve um processo interpretativo por meio do qual os participantes
relacionam a informação em potencial num evento musical a um mapa cognitivo
dinâmico e atualizável e sua própria condição proposital" (ibid.).
Aqui fica clara a distância com relação à
antropologia cognitiva – ainda que a questão seja a da significação atribuída
aos eventos, essa é compreendida como um processo que se desenvolve em
contextos sociais sempre em transformação. Como sintetizou Kofi Anyidoho, em
sua resenha ao livro, "trabalhando com base na premissa de que o
significado é um produto social, Stone foca seu interesse pelo evento musical
na 'interação dos participantes', um direcionamento que está afinado com sua
outra premissa de que significado e significação nesses eventos não são
necessariamente fixos e predeterminados, mas antes dinâmicos e emergentes"
(Anyidoho, 1984, p. 355). Daí decorre a elaboração das "entrevistas
retroativas" como método privilegiado de pesquisa: gravar eventos musicais
e tentar, junto com os nativos, reconstruir seu significado.
Stone assume também uma posição interessante com
relação ao debate êmico-ético:
Os traços salientes de uma música, tais como
concebidos pela população que participa em sua criação e na apreciação de sua
performance, podem ser bastante distintos daqueles identificados por uma
análise em que apenas conceitos ocidentais são empregados. Em última análise,
entretanto, o pesquisador ocidental não pode jamais escapar totalmente da relevância
de sua formação. (Stone, 1981, p. 188)
Trata-se de combinar êmico e ético em um processo
intersubjetivo que envolve o pesquisador e a população estudada. A exposição
etnomusicológica envolve, assim, "uma constante e deliberada tensão entre
as relevâncias do etnomusicólogo ocidental e os padrões de ideação dos
participantes kpelle" (id., p. 189). Ao proceder dessa forma, Ruth Stone
rompe ainda uma vez com o modelo associado à antropologia cognitiva, em que o
paradigma êmico era dominante e mesmo exclusivo. Vê-se como vai se delineando,
em todos esses trabalhos relacionados, um paradigma de estudo bastante
distinto.
A quinta e última monografia a que se aludirá neste
item é Why Suyá Sing: a Musical Anthropology of an Amazonian People, de
Anthony Seeger, publicada em 1987. Aqui, trata-se de um trabalho declaradamente
bastante propositivo, cujo prefácio pretende estabelecer a diferença entre a
perspectiva de Merriam, defensor de uma "antropologia da música" em
sua obra homônima de 1964, e a do próprio Seeger, que pretende realizar uma
"antropologia musical". Diz o autor:
Uma antropologia da música olha para a forma como a
música é parte da cultura e da vida social. Diferentemente, uma antropologia
musical olha para a forma como performances musicais criam diversos aspectos da
cultura e da vida social. Em vez de estudar a música na cultura, uma
antropologia musical estuda a vida social como performance. Em vez de assumir
que existe uma matriz social e cultural preexistente e logicamente anterior,
dentro da qual a música é realizada, ela examina a forma como a música é parte
da própria construção e interpretação das relações e dos processos sociais e
conceituais. Por meio de sua ênfase na performance e na mise-en-scène de
processos sociais mais do que em leis sociais, essa antropologia musical
compartilha uma ênfase no processo e na performatividade comum a muito da
antropologia contemporânea. (Seeger, 1987b, p. xiv)
A análise de Seeger está baseada na chamada
Cerimônia do Rato, que acontece entre os Suyá quando da integração de um bebê à
sociedade suyá, que passa a ser reconhecido como uma criança que tem um nome –
é um rito de passagem. Trata-se, mais particularmente, de uma cerimônia
particular, realizada entre janeiro e fevereiro de 1972. Após uma descrição dos
primeiros dias da cerimônia (descrição que se completará ao final do livro),
Seeger se debruça longamente sobre os gêneros vocais suyá, do ponto de vista
dos conceitos nativos, sobre como os Suyá pensam a origem de suas músicas,
sobre o sentido da performance, do ponto de vista da criação da vida social, e
sobre um caso extremamente interessante de alteração da altura absoluta no
decorrer dos cantos das peças – uma análise que coloca em questão as relações
entre as categorias dos nativos (que não se expressavam a respeito desse
assunto) e as do pesquisador, que constatou o fenômeno consistente e
repetidamente.
Em uma conclusão que formaliza as dimensões
teóricas do trabalho, Seeger deixa clara a importância do estudo do
"pensar nativo sobre a música", que, segundo ele, deve ser integrado
como uma dimensão do processo de estruturação social, parte ativa desse
processo tanto quanto reflexo dele. Ao falar disso, cita explicitamente
teóricos sociais como Bourdieu, Giddens e Ortner, isto é, autores relacionados
ao chamado construcionismo social, que buscam entender uma sociedade não como
uma estrutura pronta, mas em seu processo de "estruturação", na
terminologia de Giddens.
Ora, essas cinco monografias de que tratamos
preocupam-se de forma muito intensa com as questões relativas àquilo que
significa a música para o nativo, mas o fazem de maneira substancialmente
diferente dos estudos que dominaram o primeiro florescimento desse campo,
associados a modelos derivados da lingüística formalista. De certa maneira,
podemos dizer que estamos diante de um novo paradigma para o estudo da música
do ponto de vista nativo. Para defini-lo, há pelo menos quatro pontos
principais a se considerar.
Em primeiro lugar, todos esses estudos se voltam
para contextos comunicativo-expressivos e buscam entender as concepções nativas
como parte desses processos de comunicação. De formas distintas, as cinco obras
aqui referidas se ocupam de ancorar socialmente a significação da música,
atrelá-la a contextos freqüentemente de performance: pensar sobre a música é
parte da performance, não algo que está subjacente a ela, antecedendo-a, ou que
se volta reflexivamente a ela, a posteriori. Em segundo lugar, todos
esses trabalhos estão associados a um desprestígio da antropologia cognitiva,
acentuado de Keil até Seeger, e a uma crítica à preeminência concedida à
verbalidade, como forma de captar significados fixos em um código tido por
abstrato e imóvel, a língua – os trabalhos enfatizam a mobilidade dos
significados no tempo, no espaço e nos grupos sociais. Em terceiro lugar, esses
estudos apontam na direção de um repensar da própria noção de
"teoria" como um elemento ideacional puro, pertencente ao domínio
exclusivamente reflexivo.
Especialmente nos trabalhos de Feld e de Seeger, a
questão dos estados emocionais e dos afetos é fundamental – a tristeza no
primeiro, a euforia no segundo. Em quarto lugar, enfim, trata-se de um
paradigma que não se quer mais unicamente "êmico", mas que procura
combinar as perspectivas "êmica" e "ética" num diálogo
entre pesquisador e populações estudadas. Isso está muito claro, por exemplo,
nas entrevistas retroativas conduzidas por Stone, no pós-escrito de Feld sobre
a recepção de sua obra entre os Kaluli e na percepção de Seeger, que vê na
troca entre nativos e pesquisador um dos elementos fundamentais da antropologia
musical. Esse novo paradigma (apesar das diversidades internas) incorporou
grandemente a "estrutura" musical no inventário de questões dos
etnomusicólogos, mas sempre em uma perspectiva prioritariamente antropológica,
que se pode seguir em negações dialéticas, a partir da obra de Merriam, como
desdobramentos e reformulações daquela perspectiva. Cabe constatar, contudo,
que esse direcionamento, que ainda não parece ter cedido seu lugar de preeminência
disciplinar a outro paradigma, não foi o único a se desenvolver no caminho das
negações dialéticas que partem de Merriam e, ainda que muito aproximado daquele
que vamos discutir a seguir, não se identifica a ele.
E... COMO ELES PENSAM MUSICALMENTE?
Bruno Nettl publicou em 1989 um livro sobre o
pensamento musical dos Blackfoot (Nettl, 1989). O objetivo da obra era dúplice:
"descrever um aspecto da cultura musical dos índios Blackfoot, as idéias e
os conceitos que definem e rodeiam a música. O outro, igualmente importante, é
desenvolver um exercício em método e técnica de etnografia musical,
particularmente em descobrir e comunicar maneiras de se estudar e apresentar de
forma compreensiva a cultura musical de uma sociedade" (id., p. ix). O
livro está dividido em cinco capítulos que investigam áreas diversas do
pensamento blackfoot sobre a música, especialmente "conceitos" em
sentido amplo, na linhagem de Merriam (capítulo 2), e mitos sobre a origem da
música (capítulo 3).
Apesar de não investigar amplamente o problema da
expressão (ou não) de questões técnicas, o livro contribui com uma redefinição
do procedimento taxonômico em sentido êmico, pois, de acordo com Nettl, os
Blackfoot não classificam as coisas de forma hierárquica. A conclusão do livro
traz à tona a questão da teoria musical nativa, perguntando-se se, apesar de
"não terem meios para discutir a música em termos orais ou escritos",
os Blackfoot têm ou não uma teoria da música. Nettl conclui que sim e
"compila" essa teoria baseado nas recorrências em suas notas de
campo, organizando-as em catorze afirmações sobre a música entre os Blackfoot.
A rigor, poder-se-ia analisar esse trabalho de
forma negativa, julgando pelas questões despertadas pelas monografias
analisadas no item anterior. É relevante, entretanto, não subestimar a
importância do trabalho de Nettl, que parece apontar para preocupações
distintas das do grupo de autores examinados no item anterior. É o que fica
evidente em um artigo publicado em 1994 (id., 1994). Neste texto, Nettl identifica
uma distinção entre dois objetos etnomusicológicos que, mesmo que imbricados,
apontam para questões muito particulares. Segundo Nettl,
A história da etnomusicologia passou de um
interesse do pensamento musical em descobrir como diferentes sociedades, por
assim dizer, "pensam" música a um interesse nas idéias sobre música.
De fato, na primeira parte do século XX, era senso comum entre os
etnomusicólogos que, enquanto membros de todas as sociedades, incluindo as
culturas tribais, pensavam musicalmente porque eles claramente compunham,
desempenhavam e transmitiam entidades musicais, apenas aquelas sociedades que
haviam desenvolvido sistemas de música "artística" ou
"clássica" – as culturas elevadas da Europa e da Ásia – pensavam e teorizavam
sobre a música e tinham idéias sobre ela. (id., p. 139)
Esse interesse, além de se expressar
cronologicamente na evolução da disciplina, também refletiria, segundo Nettl, a
dualidade de abordagens do "paradigma dilemático": "Existe uma
tensão entre essas abordagens – elas são parte de uma cronologia, mas elas
também representam, respectivamente, os pontos de vista paradigmáticos dos
componentes 'musical' e 'antropológico' da etnomusicologia" (id., p. 140).
Ao longo do artigo, Nettl trabalha com informação
coletada em seus mais de quarenta anos de pesquisa de campo, discutindo os
Blackfoot, a música clássica do Irã, a música ocidental, entre outros domínios,
apontando sempre para a imbricação entre o pensamento musical, uma forma
cognitiva específica, e o pensamento sobre música. Apesar disso, na conclusão
do artigo, Nettl acaba por subordinar o pensamento musical ao pensamento sobre
música:
Minha abordagem do conceito de pensamento musical
foi a de olhar para a relação entre idéias sobre música e idéias musicais. Eu não
consegui identificar o pensamento explicitamente musical como diferente de
outros tipos de pensamento e provavelmente eu não seria competente para
fazê-lo. Mas eu sugiro que a forma em que os músicos pensam musicalmente, as
formas em que eles, por assim dizer, "pensam" sua música, depende em
grande medida das formas como eles pensam seu mundo em geral. E, nesse
contexto, as formas como uma sociedade pensa sobre o conceito de música, sobre
a música na cultura, sobre os músicos, podem determinar muito sobre a forma
como os músicos daquela sociedade pensam sua música. (id., p. 147)
Apesar da dominância do modelo do "pensamento
sobre música", Nettl identifica em John Blacking uma preocupação com as
questões relativas ao pensamento musical (Nettl, 1994, p. 139). De fato, já em
sua obra A Commonsense View of All Music, Blacking dedicara três
capítulos a tratar das "idéias musicais, como distintas das idéias
sobre a música" (Blacking, 1987, p. 51). Nos ensaios reunidos em Music,
Culture and Experience, Blacking dedica-se explicitamente à questão do
pensamento musical como uma forma cognitiva específica:
[...] há boas razões para se buscar e identificar
um conjunto inato, específico à espécie, de capacidades cognitivas e sensórias
que os seres humanos estão predispostos a utilizar para a comunicação
"musical". Ao postular um modo "musical" de pensamento e
ação pré-lingüístico, não verbal, eu não estou argumentando que todas as
músicas derivam dele, ou que ele está limitado à produção de música: ele também
pode se manifestar em outras atividades humanas, e mesmo na organização de
idéias verbais. (Blacking, 1995b, p. 236)
Blacking está argumentando em prol da atenção
simultânea ao verbal e ao não verbal no estudo das músicas não ocidentais (e
ocidentais também). Nesse sentido, a preocupação com a música do ponto de vista
nativo ganha uma conotação adicional, que vai além do paradigma de verbalidade
que dominou a antropologia (e a etnomusicologia) por muito tempo e determinou a
forma como as "teorias musicais nativas" foram tratadas. O que
está em questão aqui é recolocar o problema do "pensamento" nos
quadros de uma discussão geral sobre os padrões cognitivos humanos.
Trata-se de questão ainda muito pouco explorada,
mesmo que aludida nos trabalhos de Feld e Seeger via noções como
"sentimentos" e "euforia", que, de alguma forma, procuravam
apreender uma especificidade cognitiva das culturas estudadas – buscando na
emoção uma saída para a dominância da razão como modalidade cognitiva e
expressiva –, ou mesmo explicitamente indicada por Bastos (Bastos, 1978, p.
43). A perspectiva de Blacking é, no entanto, mais ambiciosa e parece propor
uma quebra paradigmática fundamental. Ela propõe que, para além da diversidade
de manifestações do pensamento sobre a música em cada cultura, atrelado a
contextos sociais particulares, existe uma base cognitiva universal que
aproxima as sociedades ocidentais das não ocidentais e representa mesmo um dado
comum da espécie, base cognitiva que não deve ser simplesmente indicada, mas
que deve se tornar objeto central do interesse etnomusicológico. Seria, assim,
a teoria musical uma pequena marca de diferença em face de uma base cognitiva
muito mais profunda e significativa, compartilhada que é por toda a espécie? A
pergunta foi formulada e talvez seja pelas respostas sugeridas que se poderá
caracterizar o esforço futuro da etnomusicologia para refletir sobre o
"pensamento sobre a música" e possivelmente superar, ou, ao menos,
circunscrever de maneira mais adequada tal categoria.
NOTAS
1
Mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Bolsista da CAPES.
2
A definição de Adler é a seguinte: "Uma subárea nova e importantíssima
dessa parte sistemática é a 'musicologia', ou seja, a musicologia comparada,
cuja tarefa é comparar a produção tonal, em especial os cantos
folclóricos dos diferentes povos, países e territórios, com um objetivo
etnográfico, e classificá-la, em toda a sua diversidade, segundo suas
características" (Adler, 1885, p. 14). (Salvo indicação em contrário,
todas as traduções de citações em língua estrangeira são de nossa autoria.)
3
A sugestão da correlação entre instrumentos musicais e teoria musical pode ser
vista em germe já em Hermann von Helmholtz, que, em 1877, tratando da
influência dos diferentes instrumentos sonoros nas escalas e nos modos,
reconheceu a mutabilidade desses elementos inclusive entre os "povos não
cultivados ou selvagens", dentro, evidentemente, de um quadro
evolucionista (Helmholtz, 1954, p. 358). Contudo, o próprio fato de que, diante
dessas indicações, a musicologia comparada não tenha desenvolvido um interesse
pelo estudo da teoria musical não ocidental indica mais uma vez que se está
diante de todo um sistema de pressupostos disciplinares extremamente fortes.
(Agradecemos ao parecerista anônimo da Revista de Antropologia a
indicação do texto de Helmholtz.)
4
Trata-se, originalmente, da tese de doutorado defendida na Sorbonne em 1968
(Rycroft, 1974, p. 509).
5
As resenhas de Gourlay e de John Blacking são profundamente críticas ao livro
de Keil (Gourlay, 1980 e Blacking, 1981).
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