Blog GÊNEROS MUSICAIS, de autoria de Álaze Gabriel.
Disponível em http://tudo-sobremusicas.blogspot.com.br/
Autoria:
Tiago de Oliveira Pinto
Diretor do Instituto Cultural Brasileiro na Alemanha ¾ ICBRA
RESUMO:
Este ensaio pretende esboçar, de forma
introdutória, alguns campos de interesse da etnomusicologia, disciplina, que
apesar de percebida durante longo tempo como de natureza híbrida ¾ ou seja,
pertencente à musicologia quanto a seus conteúdos e à antropologia quando se
trata de seus métodos de pesquisa ¾ cresceu consideravelmente nas últimas
décadas levando à constituição de centros de estudos e de pesquisa nas
principais universidades americanas e européias, firmando-se, cada vez mais,
com expressão própria também no Brasil. Os comentários sobre o estudo dos
instrumentos musicais ao final do texto servem de argumento às imagens que
constituem o bloco tematico do caderno de fotografias deste número da Revista
de Antropologia.
PALAVRAS-CHAVE: antropologia do som,
etnomusicologia, música, instrumentos musicais.
INTRODUÇÃO
Na concepção ocidental, o som sempre teve algo de
misterioso. Onipresente e, ao mesmo tempo, evanescente, o som não se rende
facilmente a um raciocínio acostumado com coisas, locais e configurações
estáveis.
A sensação de ouvir foi, durante séculos, dominada
pela percepção visual. Mesmo que pesquisas científicas mais recentes tenham
recuperado este sentido enquanto seus aspectos físico, cultural e mesmo social,
discursos analíticos no campo da antropologia permanecem centrados no imagético
e são poucos aqueles que contrapõem a discussão sobre o som à predominância da
visualidade nas ciências humanas e sociais.
Até o passado recente a música muitas vezes foi
tratada de forma vaga, ou mesmo ensaística por parte de antropólogos. Exemplo
ilustrativo disso encontra-se no Tristes trópicos, onde Claude
Lévi-Strauss relata como sai à noite com alguns amigos Nambiquara, que vão à
mata escura construir as suas flautas sagradas. Os misteriosos sons nambiquara
que ouve no meio da noite remetem o autor a um trecho da Sagração da
primavera de Igor Stravinsky. Lévi-Strauss menciona precisamente os
compassos da obra de Stravinsky, que a seu ver se assemelha com a música dos
flautistas nambiquara. Evidentemente que isso é um ensaio mais literário do que
uma etnografia musical, pois sobre as flautas e a música dos Nambiquara nada
ficamos sabendo neste relato.
Um mal-entendido comum entre pesquisadores não
familiarizados com a documentação musical é que pensam estar analisando e
falando de música, quando na verdade discorrem sobre a letra. Isso acontece
muitas vezes em trabalhos que versam sobre a MPB. Outros pesquisadores encaram
a música na sua acepção mais estreita: quando não sabem ler partitura, deixam a
manifestação musical de lado por completo, como se ler partitura fosse sinônimo
de entender e pré-condição para falar sobre música. Neste contexto, é
importante lembrar que em muitas outras culturas se desconhece um termo, cujo
signo seja idêntico ao de "música", "music", "zene",
"musique", "Musik" etc. Na realidade música
raras vezes apenas é uma organização sonora no decorrer de limitado espaço de
tempo. É som e movimento num sentido lato (seja este ligado à produção musical
ou então à dança) e está quase sempre em estreita conexão com outras formas de
cultura expressiva. Considerar este contexto amplo, quando se fala em música, é
estar adotando um enfoque antropológico. A insersão da música nas várias
atividades sociais e os significados múltiplos que decorrem desta interação
constituem importante plano de análise na antropologia da música. A relação
entre som, imagem e movimento é enfocada de forma primordial neste tipo de
pesquisa. Aqui música não é entendida apenas a partir de seus elementos
estéticos mas, em primeiro lugar, como uma forma de comunicação que possui,
semelhante a qualquer tipo de linguagem, seus próprios códigos. Música é
manifestação de crenças, de identidades, é universal quanto à sua existência e
importância em qualquer que seja a sociedade. Ao mesmo tempo é singular e de
difícil tradução, quando apresentada fora de seu contexto ou de seu meio
cultural.
O fato de permear tantos momentos nas vidas das
pessoas, de organizar calendários festivos e religiosos, de inserir-se nas
manifestações tradicionais, representando, simultaneamente, um produto de
altíssimo valor comercial, quando veiculada pelas mídias e globalizando o mundo
no nível sonoro, faz da música um assunto complexo e rico de possibilidades
para a investigação e o saber antropológicos.
Com este ensaio pretendo tocar, de forma
introdutória, em alguns assuntos de interesse da etnomusicologia, disciplina
que durante longo tempo foi entendida como de natureza híbrida, ou seja,
pertencente à musicologia quanto a seus conteúdos e à antropologia quando se
trata de seus métodos de pesquisa. Independente deste "dilema", a
etnomusicologia estabeleceu-se com centros de estudos e de pesquisa nas principais
universidades americanas e européias, firmando-se, cada vez mais, com expressão
própria também no Brasil.
ANTROPOLOGIA DA MÚSICA
Falando-se de antropologia do som, ou sonora, dois
elementos surgem à primeira vista: o som enquanto fenômeno físico e,
simultaneamente, inserido em concepções culturais, e, do outro lado, a música
propriamente dita, isto é, o som "culturalmente organizado" pelo
homem (humanly organized sound, cf. Blacking, 1973). Os dois parâmetros,
a acústica e a cultura, ou seja, o som e as sonoridades,
respectivamente, estão presentes na pesquisa etnomusicológica do século XX.
O som, fenômeno singular de um determinado
instrumento, de um estilo vocal e, do outro lado, a rede de relações possíveis
e necessárias entre diferentes sons, relações estas que são responsáveis por
fenômenos como a afinação e a escala ¾ duas abstrações culturais
¾, merece atenção especial da musicologia e da antropologia musical. Esta
última desenvolveu-se, inicialmente, como subárea da musicologia, passando por
diversas designações, como musicologia comparativa (vergleichende
Musikwissenschaft), pesquisa musical etnológica (ethnologische
Musikforschung; Marius Schneider 1937), folclore e etnologia musical (musikalische
Völkerkunde; Fritz Bose 1952), "antropologia musical", (ethnographie
musicale) ou "música dos povos estranhos" (Musik der
Fremdkulturen; cf. Curt Sachs (1959)). Por volta de 1950 o musicólogo
holandes Jaap Kunst introduziu o termo ethno-musicology. A partir de
1956 esta designação da disciplina consagrou-se internacionalmente com a
fundação da Society for Ethnomusicology nos EUA.
Com o seu livro The Anthropology of Music de
1964, considerado decisivo para a abordagem antropológica na etnomusicologia, o
antropólogo americano Alan P. Merriam formulou uma "teoria da
etnomusicologia", na qual reforçou a necessidade da integração dos métodos
de pesquisa musicológicos e antropológicos. Música é definida por Merriam como
um meio de interação social, produzida por especialistas (produtores) para
outras pessoas (receptores); o fazer musical é um comportamento aprendido,
através do qual sons são organizados, possibilitando uma forma simbólica de
comunicação na interrelação entre indivíduo e grupo:
Music is
a uniquely human phenomenon which exists only in terms of social interaction;
that it is made by people for other people, and it is learned behavior. It does
not and cannot exist by, of, and for itself; there must always be human beings
doing something to produce it. In short, music cannot be defined as a phenomenon
of sound alone, for it involves the behavior of individuals and groups of
individuals, and its particular organization demands the social concurrence of
people who decide what it can and cannot be. (Merriam, 1964: 27).
Merriam lembra que no passado a musicologia
comparativa, enquanto subárea da musicologia, concentra o seu esforço quase que
exclusivamente na investigação de estruturas de som e de configurações
musicais, deixando de lado, em grande parte, o contexto antropológico e
cultural. Para entender a música enquanto produto e estrutura construída seria
necessário, de acordo com Merriam, aprender a entender conceitos culturais, que
fossem responsáveis pela produção destas estruturas. Merriam caracterizou a
pesquisa etnomusicológica como "the study of music in culture"
para, na década seguinte, acentuar ainda mais o paradigma cultural, definindo a
área de pesquisa como "the study of music as culture"
(Merriam, 1964 e 1977).
RODEANDO OS CAMPOS DE ESTUDO DA ETNOMUSICOLOGIA
É consenso amplo que estudos etnomusicológicos
incluam a pesquisa das músicas ditas étnicas e/ou tradicionais, o folclore
rural e urbano, mais recentemente também a música popular, e que se diferenciam
da musicologia dita "histórica" principalmente nos métodos de
pesquisa empregados. Por sua vez, esta versão "histórica" da
musicologia se ocupa, primordialmente, da música erudita de cunho ocidental e
de suas extensões em territórios não europeus, excluindo manifestações de
tradição oral e mesmo popular. A etnomusicologia destaca-se em parte também da
"musicologia sistemática", que trata da acústica musical, da
fisiologia da produção sonora e, inclusive, da sociologia da música.
Desde a sua reformulação a partir de meados dos
anos 60, tornou-se meta definida da etnomusicologia descrever os diferentes
agentes e agrupamentos etnomusicais:
• pesquisando suas ações (criação, recepção,
transmissão);
• interpretando as manifestações musicais (através
de instrumentos, cantigas, textos, performances, reações);
• verificando seus conceitos (teorias, valores e
normas);
• analisando os comportamentos psíquicos, verbais,
simbólicos e sociais ligados à música.
Colocações mais recentes, como a de Jeff Todd Titon
(1992) que define a etnomusicologia como "the study of people making
music", mostram que hoje as pesquisas dão grande ênfase ao estudo do
fazer musical e à criação que daí surge, independente de origem, de lugar
geográfico e da relação do produto sonoro com a cultura do pesquisador. Mesmo
assim, ainda estamos longe de poder formular uma definição inequívoca de
conteúdo e abordagens da etnomusicologia. São muito diversificados os meios de
pesquisa, os enfoques e principalmente os seus campos de investigação.
Em 1980 Bruno Nettl constatou que a maioria dos
pesquisadores na etnomusicologia contemporânea concordava apenas que a
etnomusicologia poderia incluir seis aspectos básicos de enfoque:
1. o estudo da música não-ocidental e do folclore
musical de maneira geral;
2. o estudo da música de tradição oral;
3. o estudo da música em seu contexto cultural;
4. o estudo das culturas musicais contemporaneas;
5. o estudo da música no contexto e enquanto parte
da cultura;
6. o estudo comparativo de culturas musicais do
mundo.
Para ilustrar diferentes enfoques na
etnomusicologia, vou comentar a seguir alguns campos importantes de pesquisa,
selecionados de forma aleatória.
MÚSICA E PERFORMANCE
A etnografia da performance musical marca a
passagem de uma análise das estruturas sonoras à análise do processo musical e
suas especifidades. Abre mão do enfoque sobre a música enquanto
"produto" para adotar um conceito mais abrangente, em que a música
atua como "processo" de significado social, capaz de gerar estruturas
que vão além dos seus aspectos meramente sonoros. Assim o estudo
etnomusicológico da performance trata de todas as atividades musicais,
seus ensejos e suas funções dentro de uma comunidade ou grupo social maior,
adotando uma perspectiva processual do acontecimento cultural.
Desde Max Weber sabemos que toda ação social está
sujeita a uma dinâmica própria de cunho cultural. Antropólogos dos anos 70
deram continuidade a este pensamento interpretando manifestações culturais como
encenação de determinada prática social. Além dos aspectos simbólicos e dos
teores comunicativos, deu-se importância ao processo cultural incluindo seus
parâmetros de contexto, forma e gêneros. Passou-se a considerar não apenas o
conteúdo de falas, mas também o ato da fala enquanto fenômeno de comunicação,
seus ensejos e sua etnografia. Para uma pesquisa musical, em que música
significa uma forma específica de comunicação não-verbal e em que o momento
processual, as partes não fixadas e improvisadas tomam espaço central da
investigação, foi importante adotar um enfoque semelhante.
Para Turner e Schechner (1982) performances
são, simultaneamente, étnicas e interculturais, históricas e sem história,
estéticas e de caráter ritual, sociológicas e políticas. Em última instância performance
é um tipo de comportamento, uma maneira de viver experiências. Vistas desta
maneira, Turner e Schechner deixam claro que performances não se
restringem apenas a cerimônias, rituais, eventos musicais e teatrais etc., mas
que se estendem a muitos domínios da vida, seja ela tribal ou inserida no mundo
industrial e moderno.
Signos da
performance e manifestações expressivas
Quais seriam então os elementos básicos que servem
de pontos de apoio à performance musical propriamente? Simultaneamente a
um sistema que define espaço e tempo, dando à performance musical uma
limitação nessas duas dimensões principais, há outros sistemas de signos, dos
quais dispõem os seus agentes ativos: a formação do "elenco", os
atores, a interpretação, a entonação, a comunicação corporal etc. Ao lado dos
signos visuais como a decoração e a organização do espaço, há os elementos
acústicos, como a música e outros tipos de sons. Além destes devem ser
considerados texto e enredo da performance, com seus significados
lexicais, sintáticos e simbólicos. Os produtores e protagonistas da performance
dependem desta soma de elementos, que constituem o plano sensório e de
convenção geral. Em conjunto com os elementos da dramaturgia temos aí a
matéria-prima com a qual se constrói outras grandezas, ou seja, através da sua performance
o acontecimento sonoro da música traz à tona fenômenos diversos, por vezes
inesperados e não necessariamente acústicos (Oliveira Pinto, 1997: 28).
Percebendo que a performance é mais do que
apenas aquilo que se vê e que se ouve em espaço delimitado, a etnomusicologia
contribuiu com definições mais abrangentes, sugerindo mesmo que a performance
fosse "an all-expressing, as well as all-embracing phenomenon"
(Messner, 1993: 15). Assim performances marcariam todas as atividades
humanas, sempre que inseridas em algum quadro de referência sociocultural.
Em seu estudo sobre mecanismos que levam a mudanças
em repertórios de música, John Blacking aponta para a performance
musical como principal agente de persistência e, simultaneamente, de alteração
de tradições. As questões que mais lhe parecem pertinentes no contexto de
processos trasformativos da música e do sistema musical (Blacking, 1979: 8)
podem ser adaptadas à análise da performance musical, como a seguir:
1) Quem realiza a performance musical e quem
atende a ela? Qual a sua insersão no grupo? Que idéias sobre música e sociedade
estes agentes trazem para a situação da performance?
2) Como é que a ocasião da performance afeta
estruturas da música, seja diretamente, através de improvisação, variação e
resposta da audiência, ou indiretamente, com a composição especial para um
determinado evento?
3) O que é particularmente musical na performance
e nas respostas causadas pela performance, em oposição às reações
sociais, políticas etc.?
4) Como é que aspectos musicais da performance
afetam participantes individuais e assim influenciam decisões em esferas
não-musicais?
Performances de música podem ser estudadas a partir de uma
metodologia de pesquisa, que identifica os paralelos entre a prática das
manifestações expressivas e as respectivas estruturas sociais, pois
dramatização e representação musical prestam-se bem para uma leitura de
questões sociais, que seriam características do grupo estudado (Feld, 1984). No
carnaval pernambucano procurei verificar a dinâmica dos diferentes grupos
sociais atuando no espaço público e privado através da performance das
tradicionais agremiações carnavalescas (Oliveira Pinto, 1994).
É também na performance dramática e musical
que encontramos a ritualização do sagrado. Rituais fornecem elementos para se
construir uma etnografia da performance, uma etnografia que possibilita
reconhecer diversos modelos de edificação de tempo e espaço na cultura. Para o
culto de louvor de uma igreja pentecostal pude definir a trajetória da
dramatização do evento através da produção musical e cênica como representação
de valores morais e religiosos (Rodrigues, 1995). Também os estudos do
candomblé ou da umbanda, quando consideram a performance, em especial a
festa, não deixam de incluir os respectivos elementos dramáticos e de
relevância musical (Amaral, 1998). Assim, Gerard Béhague analisa a performance
de um rito de candomblé, para chegar a conclusões mais abrangentes sobre a
relação entre música e as esferas mítica e espiritual (1984).
Um possível enfoque, de natureza mais direta, é
aquele que acompanha de perto um evento específico, como um ritual de cura no
candomblé (sacudimento e ebó). Aqui pode-se elucidar detalhes importantes quando
isolada cena por cena do ritual. Este tipo de leitura da performance
coloca em evidência estruturas e regras semelhantes às de uma peça de teatro.
No candomblé, e mesmo em outros rituais religiosos, este tipo de análise, que
podemos denominar de "frame to frame", abre perspectivas boas
para o discernimento da integração de toque (o audível), ação (o visível) e
texto (o imaginário), triângulo relacional do rito que, quando colocado em
prática, funciona como mantenedor e mediador por excelência de conteúdos
religiosos e míticos (Oliveira Pinto, 1997: 31).
Evento e performance
É interessante, por final, considerar a diferença
entre a performance, enquanto conjunto de manifestações e de formas de
expressão, como definido acima, e o evento, momento de caráter mais
singular. Um evento pode ser realizado por si só:
Eventos são intervenções, regradas ou
extemporâneas, que num lugar preciso permitem a interseção de falas, tempos e
ações. Simultâneos e descontínuos, esses elementos desdobram e reiteram gestos
e atitudes que exploram o instante da apresentação. (Favaretto, 2000)
Como arte do tempo, a música por si representa um
evento. É singular, porque mesmo que se repita uma peça musical, ela nunca se
faz ouvir de maneira idêntica à execução anterior. Se assim não fosse, não se
justificariam as diversas versões das sinfonias de Beethoven gravadas pela
Filarmônica de Berlim, (sem falar nas ca. de 600 versões gravadas por
orquestras de todo o mundo). Permanece idêntica na repetição apenas a concepção
sobre a peça de música, ou seja, a composição musical enquanto idéia, e não sua
realização no tempo, um tempo que também sempre será outro.
A música como parte de outras formas de expressão
reflete a relação entre evento e performance. Esta relação é similar
àquela entre rito e ritual, o primeiro fazendo parte do último, sem deixar de
ter, simultaneamente, lugar próprio no universo social e de significados.
CORPORALIDADE
Quando os portugueses chegaram à África Meridional
assustaram-se não somente com o corpo desnudo dos africanos ¾ reação semelhante
àquela de Pero Vaz de Caminha quando deparou com os nativos no Brasil ¾ mas
ficaram especialmente indignados com o movimento desses corpos quando
estimulados pela música. Do seu ponto de vista a mímica dançada era excessivamente
insinuante e lasciva, os movimentos imorais e condenáveis.
Se em geral se fala das propriedades formais do
corpo, ele também deve ser considerado como agente que reage, que se movimenta
e que faz movimentar.
Da mesma forma como determinado ornamento na
pintura corporal traz informações sobre a cultura, é a reação deste corpo a
dados estímulos que irá denotar a inserção do corpo e, portanto, da pessoa no
seu espaço sociocultural. A reação a estímulos sensórios é um assunto que chama
a atenção durante os mais variados ensejos: observe-se como diferentes povos
acompanham música com batidas próprias de palmas, como diferentes corais se
apresentam em palco ¾ da performance imóvel até aquela cheia de swing
¾ ou como audiências reagem de forma "culturalmente marcada" a
diferentes músicas.
Dança
Um aspecto essencial da corporalidade e que, em
grande parte, depende da música, é a dança. No ritual a relação entre música e
dança revela muito do significado e da importância dos preceitos religiosos e do
mito. Aqui também o corpo é suporte de símbolos, o corpo, no entanto, que age e
que se movimenta. No candomblé, por exemplo, as vestimentas e as chamadas
ferramentas são signos essenciais da entidade divina, o orixá, mas é no
movimento que se expressa a sua natureza fundamental. Assim, a dança, da forma
como ocorre nos toques e cerimônias públicas do candomblé, serve de apoio à
incorporação dos orixás em seus médiuns, quando se apresentam aos espectadores
presentes.
Ao analisar a dança dos orixás, não podemos nos
limitar à observação superficial em relação às diversas mímicas dançadas, como:
"Oxum mira-se no seu espelho, portanto é vaidosa". Muito além desta
observação vai a percepção da reciprocidade e das relações estruturais de
música e movimento, que são específicas do orixá, de sua dança e mitologia.
Vista desta forma, a relação de música e dança é submetida a uma análise
estrutural interna. Refiro-me a elementos sensórios, que podemos denominar de
estruturas acústico-mocionais. Uma análise interna da dança parte de seqüências
de movimentos em conjunto com o seu suporte musical inerente. Aplicada ao
exemplo do candomblé, em que a dança é parte do ritual, a corporalidade se
enquadra em uma etnografia da performance com peso nos elementos
isolados de movimento e som. O primeiro resultado desta análise interna do
repertório acústico-mocional que obtive de quatro orixás (Oliveira Pinto, 1991)
já demonstra a complexidade do assunto, contribuindo, ao mesmo tempo, ao estudo
da natureza e do caráter arquetípico das divindades do candomblé, conforme
resumo esquemático na página seguinte.
Com relação à coreologia, isto é, ao estudo da
dança, como fundamentado, entre outros, por Rudolf von Laban (1950),
convencionou-se em definir quatro elementos básicos para uma descrição do
movimento: tempo, espaço, peso e fluência. O caráter "mocional", ou
seja, o caráter arquetípico de cada um dos quatro orixás enumerados acima e
expressado em movimento, encontra assim a sua correspondência direta e clara:
Movimentos
que geram som
Além da dança há outros momentos que fazem parte da
corporalidade em conexão com a prática musical. Tocar um instrumento é uma
dessas ações basicamente corporais. Além de, muitas vezes, serem vistos como
extensão do corpo humano, instrumentos musicais levam os seus mestres a
desenvolver verdadeiras façanhas, vedadas a demais corpos, não iniciados e
trabalhados para dominarem a técnica instrumental. O virtusosismo como marco
inicial do star-cult da cultura ocidental surgiu no século XIX. Niccolo
Paganini (1782-1840), o violinista, ou Franz Liszt (1811-1886), o pianista,
levaram o seu instrumento a perfeições jamais imaginadas. A gama de expressão,
que hoje pode ser verificada nas obras que estes músicos deixaram, exige um
domínio sobre o corpo que foge a qualquer padrão ou norma mais geral. A arte do
virtuose está calcada em "corpos excepcionais", semelhantes àqueles
de esportistas profissionais.
A pesquisa etnomusicológica também considera os
movimentos que geram o som no instrumento, pois estes se mostram essenciais,
refletindo não apenas virtuosismo e técnicas apuradas, como também determinadas
concepções mentais. Por questões de sua ergonomia, um instrumento musical impõe
certas maneiras de se executar movimentos. A interação do corpo humano ¾ com
suas possibilidades fisiológicas de movimento ¾ e a morfologia do instrumento
exercem grande influência sobre a estrutura musical, canalizando a criatividade
humana por vias previsíveis e musicais. Detalhada por uma análise interna, a
técnica de execução de um instrumento vai levar às regras específicas dos
padrões de movimento que, por sua vez, constituem uma importante base do fazer
musical. Estudando o alaúde de 14 cordas do Afeganistão, o dutar, John
Bailey, desenvolveu sua teoria de corporalidade e morfologia instrumental, um
fenômeno que chamou de "spacio-motor-thinking" musical
(Bailey, 1985; 1995).
A corporalidade enquanto fonte de energia coletiva
que dá vida a formas sonoras é tematizada em um trabalho de pesquisa sobre os
tambores do candombe uruguaio de Luis Ferreira (1997). Nesta música percussiva,
produzida por dezenas de tambores, ocorre uma interação da energia própria do
músico com a pressão do som coletivo e das vibrações do solo sobre o seu corpo.
Vibrações fortes, quando originárias de uma fonte sonora, neste caso um grupo
de candombe, mas também quando produzidas por uma bateria de escola de samba, e
mesmo quando oriundas de caixas de som de um trio elétrico ou de uma discoteca,
agem diretamente sobre o corpo humano. A partir de certo grau de intensidade ¾
seja de volume ou seja por causa de uma excessiva duração temporal ¾ a vibração
rítmica tem tal impacto sobre o corpo, que pode levar a alteração de seu estado
de consciência (Rouget, 1983). No caso do candombe uruguaio a vibração coletiva
não só toca os espectadores como também "passa aos ombros e chega a braços
e mãos" dos tamborileiros (Ferreira, 1997: 183). Produz-se assim, neste
tipo de evento musical, uma constante reciprocidade de estímulos energéticos
entre a corporalidade coletiva do todo (conjunto e audiência) e o corpo
individual de cada músico em ação.
ESTRUTURAS MUSICAIS
Como em toda investigação de estruturas, a busca
por elementos musicais construídos e culturalmente significantes vai levar às
menores unidades classificáveis do sistema, que servem de referência para a
percepção do todo, o "som organizado humanamente". Dentro da cultura
musical estes elementos menores estarão ligados uns aos outros de maneira
relativamente estável, estabelecendo assim a ordem musical vigente. Decifrar a
organização interna destes fatores interdependentes significa reconhecer a
estrutura musical mais ampla nos seus múltiplos detalhes. Em uma análise feita
de uma peça de berimbau tocada por um mestre de capoeira em Santo Amaro da
Purificação (BA), parti das menores unidades, aquelas que identificam o toque,
para observar como se constrói a unidade maior, a música, de forma organizada e
predeterminada quanto à disposição e combinação entre si das partes menores.
Cheguei à conclusão que aquilo que os músicos chamam de "improviso"
na verdade não tem nada de imprevisto, por obedecer às regras de combinação e
relação entre as partes menores. Pode ocorrer, isso sim, um desenvolvimento
inesperado, mas sempre dentro do previsto, determinado pela cultura musical do
berimbau no Recôncavo Baiano. Entender esta peça musical, portanto, requer um
conhecimento da música local como um todo. O grande mestre instrumentista e
compositor é aquele que impõe sua versão pessoal, porém sem ignorar o aspecto
objetivo das regras musicais existentes (Oliveira Pinto, 1988; Galm, 1997).
Quando se fala em ouvir e entender música, fala-se
da "percepção" musical. Entende-se como percepção o processo através
do qual o ser humano organiza e vivencia informações, estas basicamente de
origem sensória. Longe de existir um consenso, música e sua percepção cognitiva
é assunto que já causou polêmica entre representantes de diversas disciplinas.
Assim, há psicólogos que acreditam em processos cognitivos como universais de
natureza, pois cada ser humano dispõe de um sistema nervoso. A visão oposta já
enxerga na diversidade cultural a predisposição para uma preferência e seleção
naturais dos padrões visuais e auditivos, fazendo de cada processo cognitivo um
caso específico e culturalmente impregnado (Bornstein, 1973). Com base em dados
empíricos, a pesquisa musical ajudou a detalhar diferenças cognitivas no
processo de percepção sonora. Lembre, que ao darem início à Musicologia
Comparativa por volta de 1900, os pesquisadores, psicólogos e musicólogos em
Berlim já faziam as perguntas em torno de "como ouvem" e "como
entendem" outros povos os seus sistemas musicais, diferentes dos cânones
ocidentais (Simon, 2000).
Estruturas musicais podem denotar estilos e
características de repertórios inteiros. Podem mesmo assumir uma função
descritiva, ou então reforçar elementos não acústicos da performance
geral. Ao analisar as características do repertório musical do xangô de Recife,
José Jorge de Carvalho demonstrou os paralelos entre características melódicas
do repertório religioso e três pares de divindades contrastantes (Carvalho,
1984). Sua análise sugere que a música exerce, de fato, uma função quase que
"ilustrativa", dando ao caráter do orixá uma leitura sonora.
Elementos
de música africana
Nos primeiros anos do estabelecimento da
Musicologia Comparativa, estruturas de natureza predominantemente rítmica
passaram a interessar os pesquisadores de forma secundária. Só depois de
analisadas prioritariamente escalas e afinações "exóticas" de países
orientais, pesquisadores da primeira metade do século XX expandiram o seu
enfoque também a estruturas rítmicas. Retomando o que se sabia até a época, o
musicólogo americano Richard Waterman (1952) resumiu as características que lhe
pareciam essencias em grande parte das culturas musicais africanas, apontando
também para os seus paralelos na música afro-americana. Note-se que os cinco
critérios por ele enunciados referem-se a aspectos estruturais da música: (1)
"Metronome Sense"; (2) "Call and response Pattern",
incluindo "overlapping call and response"; (3) poliritmo e
polimétrica; (4) fraseados em off-beat dos acentos melódicos; (5)
predominância dos instrumentos de percussão (idiofones e membranofones). Este
último dado coincide com uma imagem generalizada que muita gente tem até hoje
da música africana. Apesar da inquestionável importância do elemento percussivo,
não se pode considerar como menos importantes os elementos polifônicos na
música vocal (por exemplo dos Wagogo na Tanzânia) e também na música
instrumental (sopros e cordas).
Com base no interesse pela diáspora da cultura
africana no Novo Mundo, Waterman e outros pesquisadores americanos deram início
também à documentação e descrição musicológica de repertórios de música
afro-brasileira (Herskovits, 1946; Herskovits & Waterman, 1959; Merriam,
1956; 1963). Destes estudos, a maioria ainda evidencia um enfoque
predominantemente "musicológico", que procura detectar estruturas
musicais a partir de uma visão ocidental, com as músicas transcritas em
partituras.
Não apenas entender enquanto pesquisador, mas
procurar saber como os músicos entendem as próprias produções sonoras, levou
Gerhard Kubik a realizar um grande número de trabalhos sobre música africana e
seus aspectos cognitivos.
Em um ensaio sistemático de 1984, que resume suas
próprias pesquisas musicais na África e que amplia todos os estudos do gênero
feitos anteriormente, Kubik enumera doze critérios que lhe parecem essenciais
para uma compreensão de estruturas sonoras e de movimento dos processos
musicais, cognitivos e performáticos de culturas africanas:
Música e dança: a partir de sua semântica, fica evidente que na
maioria dos idiomas africanos o aspecto sonoro e o movimento de música e dança
são inseparáveis. Ao analisar-se música africana, portanto, dança e expressão
corporal devem sempre ser considerados.
Pulsação elementar: é a pulsação contínua de
valores de tempo mínimos. Este timing é concretizado acusticamente ou
através de movimentos, significando a menor distância entre impactos sonoros
e/ou de movimentos. Não existe início ou final preestabelecidos, assim como
tampouco uma acentuação pre-definida. Na prática esta acentuação se dá, por
exemplo, na execução de um padrão de chocalho na bateria de samba que preenche
as pulsações elementares ininterruptamente. Waterman havia se referido à
pulsação elementar como "metronome sense".
Beat e off-beat: beat e off-beat representam a marcação e a
batida entre as marcações. As acentuações melódicas do repertório africano caem
predominantemente fora da marcação, ou, na terminologia ocidental, fora do
primeiro tempo do compasso. Dentro do acontecimento musical a marcação
representa um referencial onipresente, assim como também a pulsação elementar.
Ambos referenciais agem simultaneamente.
Ciclos formais: enquanto o referencial rítmico é realizado pela
marcação e pela pulsação elementar, os motivos melódicos, as frases, temas e
fórmulas musicais expressam na sua repetição ciclos formais precisos que em
geral se estendem sobre 8, 9, 12, 16, 18, 24, 27 ou 36 pulsos. O comprimento do
ciclo é definido a partir do momento do primeiro impacto até o início de sua
repetição.
Ritmos cruzados (cross-rhythm): a combinação de ritmos, frases
ou motivos pode realizar-se de tal forma que sua acentuação não coincide,
resultando em novas configurações rítmicas.
Pulsos intercalados (interlocking): trata-se aqui de uma versão
específica de ritmo cruzado, que se apresenta de forma regular, quando dois ou
três músicos intercalam suas marcações sonoras.
Padrão (pattern): em muitas culturas africanas os
músicos pensam em padrões organizados, sejam estes rítmicos, ou de outra
natureza sonora e de movimento.
Notação oral: padrões rítmicos são muitas vezes fixados de
forma não escrita. A sua manutenção fonética serve para a transmissão de
determinadas configurações musicais.
Time-line-pattern: Este é um padrão rítmico especial, de
configuração assimétrica, que funciona como "cerne estrutural" da
música. Time-line-patterns são fórmulas estáveis, produzidas em um tom
apenas, de timbre agudo, e servem de orientação aos demais músicos e aos dançarinos.
Seqüências de timbres: é a mudança de timbres que pode
ocorrer sem variação da freqüência de tom. Nos tambores, por sua vez, pode-se
produzir estruturas rítmicas, com seqüências de timbres que assumem aspectos
melódicos.
Alternâncias na polifonia (skipping process): através de usos alternados de
determinados tons dentro de uma escala, ocorrem sistemas polifônicos, que se
distinguem das polifonias ocidentais e caracterizam estilos musicais da África
Oriental e Meridional.
Padrões inerentes: o processo musical permite o surgimento de
padrões inerentes, que resultam da combinação de alguns elementos de duas ou
mais partes da música. Trata-se de um tipo de "ilusão de audição",
pois estes padrões são perceptíveis para uns, para outros só quando alertados.
(Kubik, 1984)
Aproveitando as descobertas que fez na África,
Kubik também chegou a conclusões interessantes durante suas três viagens de
investigação no Brasil, à procura dos paralelos musicais africanos existentes
no país (Kubik, 1979; 1991). No seu estudo sobre o batuque da cidade de
Capivari, no interior de São Paulo, depois de avaliado o contexto social e
familiar desta tradição nos anos 70, Kubik aproveitou para analisar e
transcrever os padrões musicais produzidos pelos instrumentos do batuque (quinjengue,
tambu, matraca, guaiá) a partir de um registro em filme. Concluiu que entre
os elementos que denotavam uma "concepção" africana estava o conceito
de toque de tambor não apenas enquanto configuração de ritmo, mas de seqüências
"timbre-melódicas". Além disso constatou uma superposição de ciclos
de 12 ou 6 batidas sobre o ciclo métrico de 3 ou 4 unidades de pulsação. Outro
aspecto importante verificado por Kubik se dá em relação aos movimentos, em que
unidades mínimas de ação levam a configurações de movimentos preestabelecidos e
igualmente cíclicos, como parte do fazer musical (1990).
Um importante achado de Kubik no Brasil foi, sem
dúvida, a existência de padrões assimétricos, os chamados time-line-pattern
de origem africana, que se preservam com notável força criativa e inovadora, e,
simultaneamente, se mantêm no Brasil com grande estabilidade quanto a sua gestalt
básica, mesmo que histórica e geograficamente distante de África. Um dos mais
característicos destes time-line-pattern é representado pela linha
rítmica do samba, executado no tamborim em um conjunto carioca de pagode. Os time-line-pattern
são responsáveis por uma variedade de repertórios de música brasileira e
funcionam como orientação para as demais partes da música na sua linha temporal.
Além disso manifestam relações históricas, confirmando, por exemplo, a origem
bantu do samba de roda, ou a origem iorubá e/ou fon do candomblé gege-nagô
(Kubik, 1979). Assim, e de forma similar à etnolinguística, o estudo
aprofundado da música, como realizado nas pesquisas de Kubik, também serve de
suporte científico à reconstrução da história das culturas africanas no Brasil.
A definição de padrão rítmico ¾ um importante
elemento estrutural da música ¾ é outro assunto que surge quando vemos que a
concepção africana de pattern não é apenas linear, mas multidirecional.
Voltamos ao repertório musical do berimbau. Procurando definir o que
significaria o termo nativo "toque", há dois componentes básicos para
a sua formulação:
1. O componente horizontal ¾ a seqüência
rítmico-métrica que se estende sobre um ciclo de ao menos oito pulsações
mínimas;
2. O componente vertical ¾ a variabilidade no
âmbito de tons, ou seja, a disposição sucessiva de dois tons distintos no ciclo
de pulsações.
Uma das definições de pattern na música
africana, como "a mais longa seqüência consecutivamente repetida"
(Koetting, 1970), também vale para fórmulas rítmicas nos mais variados
conjuntos afro-brasileiros, assim como para o toque de berimbau. Para este
último a definição inclui, portanto, além da espacialidade dos seus dois tons
básicos, uma duração delimitada pela própria configuração sonora, que, quando
repetida, já denota o novo início do toque.
Afinação
O ritmo, a métrica de uma peça musical e as
seqüências cíclicas de determinados padrões, como os própios time-line-pattern,
pertencem ao componente horizontal da música. Diferente de ritmo ou mesmo de
configurações melódicas, as estruturas de afinação e de combinação de
intervalos já apresentam uma disposição vertical. Por resultarem de
simultaneidades sonoras, os aspectos verticais de toda música são, muitas
vezes, mais difíceis de perceber do que os horizontais, que se estedem ao longo
da linha temporal. A este domínio vertical de estruturas sonoras pertencem as
afinações de instrumentos.
Habituado a certas relações de intervalos,
principalmente também às afinações diatônicas e temperadas da música ocidental,
o nosso ouvido pode, automaticamente, "corrigir" determinadas
"desafinações" alheias. Estar "fora do tom" ou
"desafinado", em si já são conceitos etnocênctricos, pois pressupõem
que o outro esteja errado pelo fato de estar fora das normas do mundo musical
próprio, este sim, supostamente "no tom" e "afinado".
Ao estudar as músicas de pífanos e da pequena gaita
dos grupos de caboclinhos de Pernambuco e da Paraíba em 1984 e 1985, verifiquei
a constância de um elemento de afinação destes intrumentos que têm na terça
neutra um recurso básico, que transcende o puramente estilístico. A remoção das
terças maior ou menor das melodias, e a inserção, ao invés delas, da terça
neutra, toma do repertório nordestino das flautas o jugo dos modos maior ou
menor, sem os quais, lembre-se, não existiria a música do ocidente, baseada na
tonalidade e harmonia funcional. Ora, o fazer música, que não esteja em uma
tonalidade maior ou menor e a utilização de intervalos intermediários, portanto
não temperados, é assunto para festivais de música de vanguarda, atonal e de
pouca aceitação do público de massa. No entanto, as bandas de pífanos do nordeste,
os aboios, as trovas dos repentistas, as toadas de caboclinhos, os forrós pé de
serra, todo este vasto repertório é caracterizado pela terça neutra. A
conclusão que se tira deste fenômeno sugere uma explicação possível para a
força das manifestações culturais do nordeste, mesmo quando fora de seu
contexto.
A terça neutra nordestina como aspecto peculiar de
afinação é uma característica que não só marca uma "paisagem sonora"
especificamente nordestina, como também é responsável por uma série de
procedimentos que dizem respeito até a própria concepção de mundo. Um exemplo
disso é a convivência pacífica entre instrumentos como o acordeom, com seus
intervalos diatônicos temperados, e os estilos vocais, como o aboio, ou as
bandas de pífanos, estes últimos regidos pela terça neutra. Esta
simultaneidade, que, aparentemente, não cria atritos intransponíveis,
contradizendo assim tudo o que pregam as teorias musicais do ocidente, denota a
abertura com que estruturas tradicionais da sociedade no Nordeste abarcam elementos
da globalização, sem por isso destruir ou renegar os conceitos próprios mais
genuínos.
A fim de exemplificar a configuração da
"escala nordestina" com sua terça neutra, medi os intervalos de
diversos pífanos pernambucanos, paraibanos e alagoanos, chegando ao seguinte
padrão, que se torna mais claro quando comparado com os intervalos da escala
temperada:
TEORIAS NATIVAS
Em todas as áreas de cultura, a pesquisa de teorias
nativas beneficiou-se da chamada cognitive anthropology e também do
enfoque "êmico", ou seja, da adoção de uma perspectiva de dentro da
sociedade (Headland, Pike & Harris, 1990). No caso da música, os aspectos
cognitivos da percepção de estruturas sonoras e o isolamento de unidades
menores que constituem, através de relações específicas, o todo da peça musical
são de interesse prioritário neste tipo de enfoque. Não apenas questões
voltadas à natureza do som e das respectivas realizações sonoras pertencem às
noções nativas, mas lhe dizem respeito também indagações sobre causas, efeitos,
funções e processos mentais da criação musical.
O primeiro problema que se coloca em relação a
teorias e conceitos musicais nativos é a procura por equivalentes de termos
como "música", existente na maior parte dos idiomas europeus.
Conforme mencionado acima, a expressão "música", que nos parece
básica, prova ser, ao contrário, uma abstração inútil do ponto de vista de
muitos povos, como bantu ou iorubá, talvez até nos idiomas não-ocidentais como
um todo.
É com peso na investigação dos conceitos nativos de
instrumentos musicais que Hugo Zemp, etnomusicólogo do Musée de l'Homme de
Paris, publicou um livro sobre música e sociedade Dan (Costa do Marfim), uma
das primeiras monografias com enfoque antropológico sobre o pensar musical de
um povo não-ocidental. Além dos instrumentos, a sua utilização, simbologia e
mitologia, Zemp (1971) retrata a concepção musical dos Dan através do
vocabulário específico, das funções da música e dos que fazem música, da música
no ciclo anual de vida, suas diferenciações entre mulheres e homens etc.
Outra pesquisa em teoria musical nativa, que
representa um trabalho de relevância não apenas para a etnomusicologia
brasileira, mas para a disciplina de uma forma geral, é "A musicológica
kamayurá" de Rafael José de Menezes Bastos (1978). O próprio título do
trabalho de Bastos mostra a preocupação do autor em desvendar uma lógica
específica do pensar de um determinado grupo indígena da região do Alto-Xingu.
Retratando a multiplicidade das dimensões teóricas da "musicológica"
kamayurá, o livro de Rafael Bastos inaugura a mais recente fase da
etnomusicologia no Brasil. É significativo que este novo impulso para a
disciplina parta da antropologia, encerrando também no Brasil sua condição
restrita de subárea da musicologia. Ironicamente esta mudança de paradigma se
dá transformando música ("musicologia") em uma noção antropológica
("musico-lógica").
Terminologias
e concepções
Nenhuma forma de cultura expressiva exige, mesmo no
discurso entre leigos, tão vasto "vocabulário técnico" como a música:
além do termo música, fala-se no Brasil naturalmente de ritmo, tonalidade,
melodia, cantiga, instrumento, e mesmo de harmonia, compasso, cadência, escala,
sonoridade, timbre etc. Diferente de outras áreas do saber local, não é
contraditório teorias nativas operarem no campo musical com concepções
próprias, não-ocidentais, e utilizarem, ao mesmo tempo, esta terminologia, que
é derivada da teoria musical européia. Quando, no entanto, músicos, mestres e
entendidos de manifestações de tradição local utilizam termos desta natureza,
deparamos com uma re-significação própria e precisa da terminologia, dentro de
um corpo definido de saber. Desvendar as verdadeiras teorias musicais é
importante tarefa da etnomusicologia.
No Recôncavo Baiano a tradição da viola de samba, o
machete, reflete uma destas teorias que se utilizam de uma terminologia
ocidental inteiramente resignificada. O próprio machete, de origem portuguesa,
prova o quão equivocado é acreditar na procedência do instrumento como
responsável pela natureza da música tocada neste instrumento. Da mesma forma, a
utilização de determinada terminologia nada reflete, a priori, sobre as
concepções que ela compreende. Sabemos que concepções africanas, e derivadas
destas, se concretizam, independente do instrumento pertencer genuinamente à
tradição africana ou não. Prova disso são os inúmeros estilos regionais de
música para violão na África, nos EUA (no blues, por exemplo) e também
no Recôncavo, com o seu samba-de-viola.
No caso do machete a concepção responsável pela
produção sonora está fundamentada em um pensamento acústico-mocional (ou spatio-motor-thinking,
no dizer de Bailey (1985)) em que padrões definidos de seqüências de movimento;
técnicas específicas de encadeamento de duas configurações rítmicas produzidas
por indicador e polegar da mão direita e a relação de acento e harmonia com o
todo manifestam um universo musical próprio, nitidamente africano. Além deste
pensamento acústico-mocional o quadro de referência teórica da música do
machete baiano baseia-se na noção de cinco "tons" distintos:
ré-maior, dó-maior, lá-maior, sol-maior e mi-maior. No entanto, aqui a
semântica desta terminologia é muito mais abrangente do que aquela da teoria
musical ensinada em conservatórios. Pelo contrário, o saber de conservatório
ligado aos termos "ré-maior", "dó-maior" etc. nem está
presente na concepção do repertório do samba-de-viola, embora coincida com a
relação "tonal" absoluta dos cinco "tons" entre si. Este
último dado talvez comprove a origem terminológica do samba de viola na
concepção ocidental, porém nada mais que isso. A teoria nativa vai em outra
direção. Aqui "tom de machete" significa a realização sonora de
padrões de movimento definidos, conforme visto acima. Cada um dos cinco
"tons" tem as suas fórmulas de movimento e sua própria resultante
acústica, além do grau de altura de cada um dos tons, dentro de uma escala
imaginária.
Os padrões acústico-mocionais de cada "tom de
machete" contém uma característica estética, que irá repercutir na música
e, inclusive, na escolha do "tom" na hora de sua execução no
conjunto. O "tom" que melhor se presta para o acompanhamento de um
samba puxado pelo cantor de forma "solta" e "esparramada" é
"ré-maior", enquanto "mi-maior" é considerado o mais
"pesado" e "duro" dos tons. Dar fluência à festa, segurança
e velocidade nos pés dos dançarinos e uma base favorável às chulas improvisadas
e respondidas pelos cantores exige preferencialmente que se toque no "tom
ré". Colocar à prova um puxador de chula recém-chegado à festa, já motiva
os instrumentistas a introduzirem o "tom mi", atravessado de
natureza, mais difícil mesmo para os dançarinos. A diferenciação precisa dos
cinco "tons de machete", na prática e também nas conversas e nos
comentários entre os músicos, evidencia um importante aspecto da teoria musical
do Recôncavo Baiano (Oliveira Pinto, 1991: 135-7).
Na teoria musical do ocidente,
"ré-maior", "dó-maior" etc. designam a tonalidade da música
em questão. Esta definição difere, como recém-exposto, da forma como os termos
são empregados no samba-de-viola do machete baiano. Devo observar, ainda, que
em relação ao termo "tonalidade" já verifiquei diversas utilizações
no contexto das mais variadas tradições musicais brasileiras. Na Bahia, Mestre
Vavá dizia, comentando um jogo de capoeira: "Aí o berimbau muda a
tonalidade". Referindo-se ao fato de o tocador de berimbau mudar o caráter
dos toques, interferindo assim diretamente no desenvolvimento do jogo. Já o
forrozeiro Valdir do Acordeon de Pernambuco, ao descrever seu instrumento,
comentava: " Apertando estes botões, a sanfona fica com outra
tonalidade", demonstrando que, ao acionar os registros, sua sanfona
adquiria novos timbres.
Estes e vários outros exemplos mostram que a
terminologia musical dos conservatórios de música passaram a fazer parte
integral de outras teorias nativas. No entanto não representam mais que
empréstimos lexicais, cuja semântica original foi completamente resignificada.
Somente ao desvendar estas teorias que se vai chegar às concepções intrínsecas
ao vocabulário musical, tão diferenciado, ou mais, quanto sua versão original.
PAISAGENS SONORAS
Timbres característicos, fenômenos como a
mencionada terça neutra nordestina, maneiras próprias de entoar a voz, tudo isso
é responsável por sonoridades locais, que se mesclam com outros sons, ruídos,
falas, fazendo surgir verdadeiras "paisagens sonoras". Perceber e
pensar a produção sonora musical como parte de uma paisagem sonora mais
abrangente é um assunto relativamente novo na história da etnomusicologia. Foi
o compositor e musicólogo canadense Murray Schafer que forjou a noção de soundscape
como o meio ambiente sonoro do homem (1977). Na verdade trata-se da contraparte
acústica da paisagem que circunda os seres humanos. Deve-se distinguir entre
dois tipos de paisagens sonoras: uma natural, a outra cultural. O soundscape
natural envolve sonoridades que provêm de atividades ou ações físicas de
fenômenos naturais. Já soundscapes culturais resultam de todo tipo de
atividades humanas. Marcam, em especial, o potencial comunicativo, emocional e
expressivo do som. Chegar-se à música através do soundscape é um trajeto
complexo. Seria demasiado simplista assumir que a música fosse apenas
"destilada" do soundscape, justamente por também ocorrer o
processo inverso, ou seja, a música tem a propriedade de influenciar e mesmo de
caracterizar paisagens sonoras. Uma paisagem sonora é tão diversificada quanto
são diversos os ambientes que a produzem. Ela estará sempre impregnando a primeira
impressão que se tem em campo e que se manifesta, infalivelmente, independente
se há ou não discernimento prévio daquilo que o acontecimento sonoro significa.
O primeiro impacto sonoro é marcante, é tão delatador quanto a luz peculiar de
uma região nova, as suas cores ou os odores que a compõem.
Na certeza de que através do soundscapes
musical se chega a mais do que apenas uma combinação específica de qualidades
sonoras ou a uma configuração variável de timbres, analisei através do programa
S¾Tools, desenvolvido pela universidade de Viena, o espectro sonoro das
principais agremiações tradicionais do carnaval pernambucano. O resultado foi
surpreendente pela precisão como as diferenças dos grupos em questão se
apresentavam em relação à sua sonoridade: o maracatu rural, por exemplo,
demonstrou uma "imagem sonora" oposta àquela das escolas de samba. As
sucessão rápida de freqüências similares do conjunto de percussão do maracatu
rural gerou traços de predominância horizontal, enquanto a grande gama de timbres
dos instrumentos da bateria de samba, com suas marcações regulares, resultou em
uma imagem "verticalizada". O fato que já havia detectado na pesquisa
antropológica e social foi confirmado por estes "espectrogramas": de
fato existem diversos critérios, como o rural e o urbano, o repertório fixo e o
livre, o nacional e o local etc. que colocam o maracatu rural e as escolas de
samba do Recife nos dois extremos de um contínuo de expressões variadas do
carnaval pernambucano (Oliveira Pinto, 1996). A tradução objetiva do som de um
grupo e do respectivo soundscapes para a imagem visual abriu um
interessante código de leitura da sociedade e de sua produção cultural.
Esta pesquisa mostra que faz parte da busca por soundscapes
também a consideração das fontes que produzem o som. Como fonte acústica deste
tipo consideramos a soma total dos agentes produtores de som que contribuem
para a composição de uma paisagem sonora. A fonte acústica representa a
contrapartida material do soundscape. A sonoridade dos instrumentos
musicais é um dos elementos gerados pelas fontes acústicas.
A consideração dos soundscapes leva a uma
perspectiva mais aberta de som musical. O som especificamente musical tem
grande relevância dentro do acontecimento sonoro restante, podendo ser percebido
enquanto elemento que contrasta nitidamente de outros aspectos dentro da
paisagem sonora.
ETNOGRAFIA DA MÚSICA/PESQUISA DE CAMPO
Depois de deixar de ser uma disciplina que enxerga
os seus objetos a partir de uma perspectiva de gabinete (armchair-perspective)
¾ a pesquisa de campo tornando-se conditio sine qua non para o labor
etnomusicológico a partir da segunda metade do século XX ¾ a etnomusicologia
deixou o aspecto meramente "musicológico" por vezes em segundo plano
para se utilizar da antropologia, principalmente no tocante a suas abordagens
metodológicas. A pesquisa participativa e a etnografia da música, a transcrição
para o papel e a análise de estilos musicais, finalmente também conceitos,
termos tradicionais de ensino e de aprendizado, impuseram-se cada vez mais
através da consideração de uma ótica nativa com a prática do trabalho de campo.
Assim, o objeto de estudo deixou de ser apenas "acústico" enquanto
forma, configuração e estrutura, para adotar outras dimensões, conectadas de
maneira mais abrangente ao som.
A pesquisa de campo (fieldwork, recherche
de terrain, Feldforschung) faz parte intrínseca do levantamento de
dados e de informações na antropologia. É grande o número de orientações e de
trabalhos de estudiosos que se manifestaram em relação à construção do objeto
de pesquisa através do fieldwork na antropologia. Um estudo dedicado ao
caso específico da história e das práticas de uma etnografia afro-brasileira,
em que a música sempre ocupou um importante espaço, foi apresentado por Vagner
Gonçalves da Silva (2000). Há trabalhos que tratam mais especificamente da
pesquisa de campo na etnomusicologia. Em seu esboço de uma etnografia da
música, Anthony Seeger sugere que a base desta etnografia se encontra
precisamente no espaço entre tradição e transformações (change)
culturais:
That
there is often a next time, leads to what we might call a tradition. That there
is often not the same as the time before, produces what we might call change.
The description of these events forms the basis of the ethnography of music. (Seeger, 1992: 88)
Dos métodos de pesquisa antropológica a
investigação de campo é aquela que mais dificilmente se ensina em sala de aula.
A pesquisa de campo, principalmente também a pesquisa participativa, exige do
antropólogo experiência e um talento especial em lidar com pessoas.
Dificilmente se poderá preparar os diferentes passos da pesquisa com precisão e
de maneira predefinida. Na etnografia musical acrescenta-se o aprendizado e a
capacidade de manusear aparelhos.
Tecnicamente falando, a pesquisa musical de campo
requer um equipamento básico, que possibilita o investigador a captar sons e a
fixar imagens para a avaliação e análise posteriores. Além disso estes sons e
imagens gravados servem de material para arquivos e, quando devidamente
acompanhados de documentação, para estudos futuros. Há basicamente dois
enfoques quando se fala em documentar a música no seu devido contexto
performático:
Abordagem musicológica: o fenômeno musical enquanto
texto e estrutura está em primeiro plano. A gravação do acontecimento musical é
de fundamental importância, pois a avaliação posterior deste aspecto depende
exclusivamente do registro musical. Este registro deve servir, igualmente, para
compor arquivos especializados, portanto existe a preocupação de uma gravação
"limpa", sem maiores interferências.
Abordagem antropológica: a investigação de campo
caracteriza-se pela postura do pesquisador, que vê a música inserida no seu
contexto cultural. Dá-se importância ao todo, isto é, à "música na
cultura" e à "música enquanto cultura" (Merriam, 1964; 1977). O
registro do áudio e de imagens ultrapassa o puramente musical.
O emprego de filmadora ou vídeo na pesquisa
participativa abre possibilidades para três maneiras de registro: (1) gravação
no contexto, (2) gravação analítica e (3) o emprego da filmadora como
"bloco de anotações" 1.
(1) Gravação no contexto: o registro do
acontecimento sonoro na pesquisa de campo procura, idealmente, fazer jus à
situação e ao contexto encontrados. Mesmo que se dirija os microfones para que
captem, da melhor forma possível, a sonoridade da fonte musical (cantores,
instrumentistas), o pesquisador procura não fazer intervenção na performance
que encontra. Não vai pedir a músicos que mudem de posição, que dêem início à
sua atuação fora do momento previsto, porque assim lhe convém melhor etc. O
registro que é feito desta forma tem a vantagem de documentar a sonoridade
geral do evento, sendo fiel também ao desenvolvimento da performance no
seu tempo real.
(2) Gravação analítica: é aquela que é
feita, ou dirigida, a partir de um projeto de pesquisa definido de antemão pelo
pesquisador. Existe uma hipótese acerca da música a ser gravada e que se
pretende ilustrar e aclarar posteriormente, quando em posse das gravações. Esta
maneira de gravar não se prende ao tempo real e ao espaço previstos pela performance.
O ponto de referência do pesquisador é o microfone, extensão do seu próprio
ouvido. Há três formas básicas de gravação analítica:
• O microfone segue o som que lhe interessa,
produzindo um recorte (função de "lupa" ou, comparável à fotografia,
de "tele-objetiva").
• O microfone desconsidera o espaço previsto pelo
processo e desenvolvimento da performance, procurando um ponto fixo pelo
qual se desenrola em seqüência, pontual e espacialmente reduzido, todo o
acontecimento. É a procissão que passa pela frente do microfone.
• O microfone é ponto focal da sessão de gravação,
que neste caso é organizada de acordo com as indicações do pesquisador
(situação semelhante a estúdio). Entra aqui também a técnica de gravação em
play-back, para produção de material de transcrição.
(3) Câmera como bloco de anotações: quando a
câmera de vídeo e também o gravador servem de "caderno de anotações",
o registro segue um padrão de observação sem preocupação com tempo, espaço,
coordenação dos sons e das imagens gravadas. Capta-se todo o possível de
maneira imprevista. Obtém-se os primeiros "rabiscos" registrados, não
no caderno de campo, mas na fita de vídeo ou áudio da câmera ou do gravador.
Apesar de menos difundida na pesquisa
etnomusicológica do que se poderia imaginar, a filmagem enquanto recurso para
uma etnografia musical (Bailey, 1989) foi utilizada com sucesso por
pesquisadores como Mantle Hood, Gerhard Kubik, Hugo Zemp, John Bailey e Artur
Simon. Hood e Kubik ainda filmaram em 8 mm mudo no início da década de 1960. A proposta
original era utilizar a filmagem como apoio para a análise musical. Assim Kubik
desenvolveu um método especial de transcrição do filme. Já Hugo Zemp, John
Bailey e Artur Simon filmaram em 16 mm (Simon, 1989). Os filmes de Hugo Zemp
sobre os Are-Are (1978), sobre o "Jodel" na Suíça (1987) ou sobre o
canto bifônico da Mongólia (1989) são considerados pioneiros do gênero
etnomusicológico. Ao mesmo tempo estes filmes mantêm a característica do
"filme analítico-musical". Já no seu documentário de 1998, filmado em
vídeo sobre diversos estilos de violão e guitarra africanos, Gerhard Kubik usou
a câmera como "bloco de anotações", inserindo posteriormente cenas de
filmes documentários mais antigos que havia feito nos anos 60 e 70. Este filme
é exemplo de um novo gênero, onde documento, detalhes biográficos e relatos
variados se mesclam, formando uma composição quase impressionista sobre o tema.
Munido de seu equipamento de gravação, o
etnomusicólogo sempre ocupa uma posição especial em campo e no contexto social
onde se encontra. Enquanto hoje não se leva a campo mais do que no máximo 10 kg
de equipamento, Simone Dreyfuss Roche, pesquisadora do Musée de l'Homme, ainda
teve de transpotar 300 kg de equipamento de áudio para o Xingu em 1959. Mesmo
com pouco material técnico, e câmeras pequenas que chamam menos atenção e não
exigem vários operadores, é preciso refletir o que significa este tipo de
pesquisa em campo. Baseado na minha própria experiência, esbocei na tabela que
segue três cenários de pesquisa diferentes. Têm em comum apenas o fato de se
tratarem de três rituais religiosos, possuindo cada um suas particularidades
com implicações para a pesquisa e o registro de campo:
Pesquisa
e participação musical
A participação musical como estratégia de pesquisa
de campo, tocando um instrumento, cantando ou dançando, foi recomendada por
Mantle Hood, que transformou o seu departamento de etnomusicologia na
Universidade da Califórnia em um dos mais conhecidos laboratórios práticos de
música mundial a partir do final dos anos 60. Para ele as propriedades
musicais, as suas regras, a percepção de padrões específicos ou os critérios
que definem toques podem melhor ser estudados através da prática musical (Hood,
1963). Independente de Hood um grande número de pesquisadores já praticava
música durante suas permanências em campo e continua dando importância ao
aprendizado prático como parte da pesquisa: Gerhard Kubik desvendou em 1962 os
princípios que geram a música dos xilofones amadinda e akadinda
do extinto reino de Buganda (Uganda), aprendendo a tocar o respectivo
repertório (Kubik, 1995), John Chernoff chegou à "sensibilidade" da
música africana investindo no aprendizado de tambores da África ocidental
(Chernoff, 1979) e James Kippen estudou tabla indiano da tradição (gharana)
Lucknow com Ustad Afaq Husain Khan com o intuito de decifrar um tipo especial
de "gramática" musical indiana (Kippen, 1988).
Não resta dúvida quanto à importância das
experiências práticas. Há pesquisadores, porém, que enxergam obstáculos para o
observador participante, não tanto entre o que vê e o fato em si, mas na
discrepância entre o praticamente intraduzível de sua experiência e uma
linguagem de consenso geral no momento de comunicar o que se viveu em campo.
Chernoff (1979) acredita na necessidade de uma ação interpretativa muito
elaborada por parte do pesquisador observador-participante, caso contrário terá
dificuldade em chegar a um nível de abstração capaz de retratar com precisão
tanto a realidade do mundo por ele presenciado quanto a relatividade de seu
próprio ponto de vista.
Notação e transcrição
Uma das preocupações que persiste desde os
primórdios da etnomusicologia é como descrever e fixar no papel, ou de outra
forma visual, o acontecimento musical.
A língua falada é registrada, mitos e literatura
oral são anotados a partir destes registros. A música pode ser gravada enquanto
registro sonoro, a sua fixação no papel, no entanto, é mais complicada. A
música nasce e cresce no tempo, reflete uma organização bastante ou menos complexa,
revela um conteúdo específico para determinadas pessoas ou então apela para o
emocional e se acaba, passando em seguida à memória. Descrevê-la é um processo
que passa do subjetivo ao discurso formulado com termos técnicos ou através de
uma terminologia nativa.
Foi a invenção do "Phonógrapho de Edison"
em 1877 que possibilitou a antropólogos registrarem para análises posteriores
falas e músicas dos povos que visitavam. Os cilindros de cera que serviam de
suporte de gravação para o fonógrafo de Edison chegavam à Europa na bagagem de
antropólogos e viajantes, gravados com os mais diversos sons, melodias,
cânticos e falas de todo o mundo.
No início o interesse científico pela música de
outros povos restringia-se principalmente às escalas e aos diferentes sistemas
musicais, aos instrumentos e sua afinação, sua utilização e também ao estudo e
análise das melodias, que eram transcritas minuciosamente para a grafia da
música ocidental.
A visão da música como um objeto de pesquisa e o
estudo de músicas de outros povos no plano da investigação musicológica foram
as duas principais justificativas para a transcrição em partitura de fenômenos
musicais de todo mundo. No afã de serem reconhecidos pelos estudiosos da música
ocidental, pesquisadores de tradições "exóticas" apresentavam as
músicas transcritas em pauta na qualidade de documentos. Estes lhes serviam de
fontes para a pesquisa, da mesma forma como outros o faziam com partituras de
Bach ou de Mozart.
A transcrição musical vista como fonte de estudo e
análise apresenta, no entanto, alguns problemas fundamentais:
• A escrita musical européia é intrínseca à
historia musical do ocidente. Ela se desenvolveu conforme as necessidades e o
próprio desenvolvimento desta música desde a renascença até fins do século XIX.
Por esta sua história peculiar ela permance incompatível com muitos sistemas
musicais não-ocidentais.
• A transcrição musical não representa um documento
da cultura a ser utilizado como base objetiva para uma análise, pois ela passou
pela interpretação daquele que faz a transcrição em pauta.
• A representação gráfica mais adequada deveria
fazer jus àquilo que se pretende demonstrar com a transcrição. O processo de
transcrever som para o papel deve iniciar com a pergunta: "o que pretende
ser demonstrado?".
• Este tipo de transcrição já requer um
conhecimento mais aprofundado da cultura musical. Por isso ela procura
representar o sistema musical a ser descrito, a sua "gramática"
musical. Passa a ser resultado da análise, e não ponto de partida da mesma.
• Como documento do repertório registrado e para a
sua análise a transcrição musical não supera o material áudio ou áudiovisual.
A transcrição musical que partia unicamente do
material de áudio gravado, sem fazer uma estruturação prévia, reflete uma
"audição externa" da cultura musical a ser analisada. Pelo seu
caráter "externo" este tipo de transcrição contém uma grande porção
de avaliação subjetiva do pesquisador. Em contrapartida uma análise interna
pode, por exemplo, partir de seqüências de movimento inerentes à técnica de
execução de um instrumento, levando assim a uma percepção mais apurada e
objetiva do acontecimento sonoro. Pesquisas musicais feitas na África, por
Gerhard Kubik, levaram o antropólogo a tomar o movimento como base geradora da
produção sonora com o instrumento. O resultado é bem mais ilustrativo do que os
sons fixados em pautas, inclusive também para a comparação entre diversos
repertórios, técnicas de execução musical etc. É quando se transcreve para o
papel peças de música tocadas em xilofone, tambores, berimbau etc. Muito mais
do que o resultado acústico puro, importa neste tipo de abordagem saber com que
tipo de movimentos o músico gera os seus sons. Em música africana ou
afro-brasileira, há movimentos que produzem sons variados, de acordo com a
qualidade do movimento, e há outros tipos de movimentos que omitem qualquer
sonoridade, dando seqüência, porém, a um contínuo de movimentos organizados.
Desenvolveram-se assim técnicas de transcrição musical do filme, e
posteriormente do vídeo, nas quais a combinação de som e imagem possibilita uma
leitura mais completa do acontecimento musical. Mais recente estas formas
"objetivas" de transcrever músicas levaram finalmente a buscar apoio
nos recursos do computador e softwares especializados.
Podemos mencionar ainda a transcrição do som para o
papel que é baseada em gravações analíticas. Já foi comentado que este tipo de
registro gravado é realizado a partir de um projeto de pesquisa definido de
antemão pelo pesquisador. Se o microfone passa a ser uma extensão do ouvido,
que busca captar de perto detalhes da música, esta gravação vai também
possibilitar a "percepção" analítica, e assim a respectiva
transcrição para o papel. Ao presenciar um conjunto de 12 flautas monófonas, as
xinveka de Moçambique, cada qual afinada em um tom diferente, e que eram
tocadas simultaneamente enquanto os músicos formavam um círculo em movimento,
fixei o microfone em um ponto deste círculo. Cada flauta ficou registrada
individualmente por alguns segundos, tempo suficiente para reconhecer sua
afinação e perceber o padrão rítmico representado por ela. Apesar de cada
instrumento se sobressair em dado momento, a performance como resultado
musical fica audível ininterruptamente. Sem o recurso da gravação analítica
dificilmente se decifraria o papel de cada uma das flautas xinveka
dentro da estrutura geral da peça musical.
Simha Arom, etnomusicólogo do Lacito-CNRS em Paris,
ainda levou mais adiante esta técnica de gravação, fazendo que membros de um
conjunto de sopros da República Central Africana tocassem a sua parte
isoladamente. Como o músico necessita ouvir e interagir com o todo para tocar a
sua seqüência, Arom fez com que tocasse com um fone de ouvido na cabeça.
Através deste ouvia a música do conjunto, gravada previamente, reconhecendo e
repetindo sua parte. Trata-se aqui de uma gravação em play-back no campo. As
partes isoladas em diversos canais de gravação servem para fins de análise e
mixagem posterior.
Preservação
Uma das preocupações sempre presentes nas primeiras
fases de constituição da etnomusicologia foi o medo do desaparecimento de
músicas e mesmo de tradições musicais inteiras. Em carta datada de 4 de abril
de 1914, o médico Albert Schweizer, que abandonara uma carreira promissora de
músico, para tornar-se médico e abrir um hospital no Gabon, África Ocidental,
dirige-se a Carl Stumpf, diretor do Depto. de Psicologia da Universidade de
Berlim, primeira sede do arquivo fonográfico, já constituído como o maior
arquivo de música de todo o mundo com um acervo de ca. de 15 mil cilindros de
cera do fonógrafo de Edison. Em sua carta o médico manifesta a preocupação com
certas tradições musicais no país de sua residência. Diz Albert Schweizer:
Neste país há antigas e belíssimas cantigas de
remadores. Parecem-se com motetos e são constituídas de interessantíssimos
contrapontos. Está mais do que na hora de gravar estas músicas, pois os jovens
só aprendem a cantar hinos cristãos com os missionários. Além disso os barcos a
motor estão fazendo desaparecer os barcos a remo, onde 20 remadores em pé,
cantavam, por vezes dias e noites a fio, para que pudessem manter o ritmo de
suas remadas. O fim dos barcos a remo significa: fim das cantigas de remadores.
(Apud Simon, 2000: 54)
Arquivos de música, como os de Viena (1899), Berlim
(1900), Paris (1900) ou São Petersburgo (1902) nasceram como centros de
documentação e de pesquisa sonora, quase que exclusivamente de música. Arquivos
sonoros ligados a bibliotecas e arquivos públicos surgiram ao final da década
de 1920 e no início dos anos 30 (Archive of Folksong of the Library of
Congress, Washington e a Discoteca Pública Municipal de São Paulo). Arquivos com
propósitos de disseminação radiofônica foram criados junto a estações de rádio
nos anos 30, como a BBC Sound Archive, que em 1936 postulava "preservar
gravações sonoras de valor para a sua rádio-difusão". Arquivos sonoros de
música de tradição oral instalados em departamentos universitários nasceram a
partir da década de 1930. É o caso do arquivo de música folclórica da Escola
Nacional de Música no Rio de Janeiro, cujo diretor, Luiz Heitor Correa de
Azevedo (1905-1992) pode ser considerado o primeiro etnomusicólogo moderno do
Brasil. Duas décadas depois surge o Archives of Traditional Music da Indiana
University, um dos mais importantes do gênero nos EUA hoje em dia.
Enquanto os arquivos de Viena e, em especial, o de
Berlim, mantêm sua tradição de instituição acadêmica, aberta para material
sonoro, independente de sua origem ou identidade cultural, sem finalidade outra
que vá além da pesquisa pura, há arquivos que perseguem metas marcadamente
nacionais. É o caso do arquivo de folclore turco em Ankara (Türk Folklore
Arsivi) de 1939, do "Instituto Nacional de Folclor de Venezuela"
(1946) ou do "Folk Music Research Department" da Escola Jamaicana de
Música em Kingston, criado em 1966. O intuito dos fundadores deste último
reflete o espírito de muitos arquivos nacionais de música tradicional:
"preservar, estudar e tornar acessível a música tradicional da Jamaica.
Descobrir suas origens e as influências sobre a música jamaicana"
(Christensen, 1991: 218). Em outros países a preocupação com a preservação de
música tradicional tem finalidades até mais explícitas, pois é nela que os
governantes vêem a possibilidade de uma afirmação nacional através da
identidade cultural canalizada pela música e, conseqüentemente, como no caso de
um país pequeno e pouco divulgado como o Oman, apóiam a sua disseminação
através dos meios de comunicação de massa, a fim de que "reflita o
verdadeiro caráter da música tradicional e abra a perspectiva de um melhor
reconhecimento do país" (Al-Khusaibi, 1985). Em outras palavras, por
muitos políticos música tradicional é vista como veículo importante na
construção de uma imagem nacional. E, para eles, esta imagem é favorável no
Exterior2.
Justificam assim, estes governos, a criação e manutenção de um arquivo sonoro
nacional, que preserve o patrimônio imaterial do país.
Datam, finalmente, de um período mais recente
arquivos sonoros mantidos por particulares. Um dos mais conhecidos é o
"Music of Man Archive" do etnomusicólogo suíço Wolfgang Laade, que
durante várias décadas de gravações musicais e registros videográficos coletou
material sonoro nos continentes asiático, europeu e africano. Trata-se de um
empreendimento pessoal, que nunca fez parte de algum projeto de pesquisa
financiado ou mantido por alguma entidade oficial, governamental ou acadêmica.
Semelhante é também o caso do acervo sonoro do "Grupo Cachuera!" de
São Paulo, que possui um rico material sonoro, de vídeo e fotográfico das
regiões sul e sudeste do país. Os critérios, que nestes dez anos de existência
do grupo ¾ liderado pelo músico e pesquisador Paulo Dias ¾ são adotados para a
recolha e para o arquivamento das gravações, fazem jus ao mais alto padrão internacional
de documentação e conservação fonográfica.
Arquivar gravações não só implica guardar de
maneira apropriada as fitas originais, suas cópias, ou outros suportes de
áudio, mas significa da mesma forma manter uma documentação detalhada sobre os
músicos registrados, seu repertório, o ensejo de sua performance, os
instrumentos utilizados etc. (Dournon, 1981). Continua válido hoje, como há
quase cem anos, o comentário que o diretor do departamento das Américas do
Museu Etnográfico de Berlim, Konrad Theodor Preuss, fez por carta a um de seus
pesquisadores, Wilhelm Kissenberth, que se encontrava no Brasil em 1908. Em sua
carta, Preuss afirmava que não era o suficiente apenas adquirir as máscaras de
dança dos índios caiapó ¾ remetidas de antemão por Kissenberth a Berlim para o
acervo do museu ¾ visto que o papel do antropólogo é retornar com as
informações sobre a sua experiência e sobre o material colhido, "pois para
a ciência os objetos permanecerão mortos se desprovidos de explicações".
Na era digital torna-se cada vez mais importante a
forma de conservação do material gravado. Após completado um século de
existência de arquivos fonográficos como centros de preservação e de
documentação de importantes patrimônios do saber e da manifestação de culturas,
sabe-se hoje em dia, mais do que nunca, que os acervos sonoros são perenes,
dado a instabilidade física e química de seus suportes materiais. É difícil
calcular ao certo qual a porcentagem do acervo mundial de cilíndros, fitas,
discos e outros suportes de áudio de valor cultural deteriorados ou destruídos
ao longo destes cem anos. Os motivos vão desde manutenção ou arquivamento
indevidos a condições climáticas desfavoráveis, guerras e mesmo displicência,
desinteresse e descuido por parte dos responsáveis3.
Outro motivo que coloca em perigo coleções
importantes é o mau estado dos aparelhos de leitura no momento de reprodução do
material de áudio. De nada vale a conservação de fitas, se o aparelho
reprodutor não estiver em boas condições: uma agulha cega de um toca-disco ou o
cabeçote sujo e magnetizado de um gravador podem facilmente destruír para
sempre gravações preciosas.
O que mais preocupa, no entanto, é a constante
mudança de formatos, em conseqüência do desenvolvimento tecnológico. Dessa
forma acontece que fitas mais antigas não podem ser tocadas ou copiadas por
falta do aparelho de leitura apropriado. Temos um caso deste no Museu Nacional,
no Rio de Janeiro, onde há cilindros de cera da coleção Roquette Pinto de 1913,
sem que haja um fonógrafo de Edison disponível na instituição para ler as
gravações (Pereira & Pacheco, 2000). É o caso também de uma coleção de
gravações feitas em bobinas de arame nos anos 40 na Paraíba, onde foi
documentado importante acervo do populário musical local, sem que se possa ao
menos escutá-lo e muito menos copiá-lo para outro formato, também por falta do
aparelho apropriado.
Estamos diante do paradoxo de que a era digital
proporciona vantagens na facilidade com que se faz gravações em campo de boa
qualidade, com aparelhos e suportes de áudio cada vez menores e mais leves, mas
que, do outro lado, arquivos sonoros, como o de Berlim, se encontram na difícil
situação de terem de recopiar todo o seu acervo em média a cada quinze anos,
pois sabe-se que a fita digital (DAT) ou outros suportes digitais jamais irão
sobreviver os cem anos que agüentaram os cilindros de cera do "Phonógrapho
de Edison"!
Organologia: instrumentos musicais
No Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da
Universidade de São Paulo há várias coleções de gravações e um número
significativo de instrumentos musicais, coletados por antropólogos, quando de
sua pesquisa de campo. Na documentação deixada pelos pesquisadores encontrei
várias vezes descrições de instrumentos musicais incompreensíveis, como: "buzina
indígena do Alto Rio". O que seria uma "buzina indígena"? É um
trompete? Que tipo de bucal tem? Com ou sem palheta?
Estas perguntas mostram que a descrição de
instrumentos musicais requer uma terminologia precisa. A falta de uma
preocupação mais apurada na descrição de um instrumento pode ser lastimável.
Recentemente encontrei no Museu de Antropologia de Berlim referências de 1818
sobre o berimbau brasileiro. É provável que se trata de uma das primeiras
informações sobre o nosso arco musical. O objeto, neste caso o instrumento
musical, já não consta mais no acervo do museu. Dessa forma as observações do
coletador, Ignaz von Olfers (1793-1872), são de dupla importância. É uma sorte
para a ciência que Olfers não se limitou a dizer que o objeto adquirido no Rio
de Janeiro era um "Musicalisches Instrument d. Neger". O nome que
encontrou no Brasil para o instrumento é "cunga". Sabemos que a expressão
gunga é utilizada até hoje para o berimbau e há diversas fontes do final
do século XIX e do início do século XX que comprovam este termo. Uma outra
informação que é de suma importância para todos aqueles que estudam a história
da capoeira e do berimbau (por ex. Graham, 1991 e Reis, 1993) é a referência
feita por Olfers ao arame de metal, que já em 1818 servia de corda para o
instrumento. Olfers também foi observador perspicaz ao mencionar que a corda
era percutida com uma baqueta de madeira. Reporta-se ainda à cabaça de
ressonância. A partir destas poucas observações, feitas há quase 200 anos,
sabemos hoje da existência do berimbau em pleno período de Regência, de forma
semelhante à de hoje!
Classificação
e sistemática
A ciência dos instrumentos musicais (em alemão Instrumentenkunde,
em inglês organology, em português organologia) é a classificação
e a sistemática de todos os instrumentos de música, compreendendo igualmente o
feitio desses instrumentos (ergologia), o material, sua forma e suas
estruturas, bem como sua nomenclatura e cassificação (êmica e ética).
O objeto essencial da organologia passou a ser
"a enumeração, descrição, localização e história de instrumentos musicais
de todas as culturas e de todos os períodos, mesmo que só produzissem alguns
tons ou que fossem utilizados apenas para fins puramente estéticos ou em
contextos religiosos, de magia ou finalidades práticas" (Schaeffner 1932).
Além disso a organologia é o estudo contemporâneo de instrumentos de música
(inventário, terminologia, classificação, descrição de sua construção, suas
formas e técnicas de uso), sem deixar de considerar a sua produção musical (a
análise de fenomenos acústicos e escalas de uso), além de critérios ligados a
fatores socioculturais e a crenças que determinam o seu uso e o status
de seus músicos. Importante é também considerar aspectos de simbologia e
estética que sempre impregnam os instrumentos de música. Há, finalmente, um
ramo dos estudos organológicos que se ocupa de aspectos arqueológicos.
Instrumentos musicais são sistematizados de
diversas maneiras. A constituição física pode ser um critério tão importante
quanto o seu emprego e hierarquia dentro de determinados conjuntos musicais
(Ikeda 1997). Algumas classificações nativas incorporam concepções de vida e
mesmo sistemas religiosos, ou seja, a classificação está intimamente
relacionada a idéias mais amplas da cultura em questão. Essas classificações
existem, independente se a cultura é transmitida oralmente ou se a sua música é
baseada em códigos e registros históricos.
A organologia considera como instrumento musical
qualquer corpo ou objeto feito pelo ser humano para produzir um som, ou sons.
Instrumentos foram inventados para realizarem sonoridades diferentes, de
extrema duração, de volume alto, ou então com capacidade para produzirem
seqüências rápidas e virtuosas, expandindo assim o universo sonoro do corpo
humano. A questão básica para a classificação dos instrumentos é como este
corpo produz o seu som, ou seja, se o som é produzido por uma corda que entra
em vibração, por uma pele de tambor que é percutida, uma coluna de ar que vibra
ao soprarmos uma flauta etc.
A primeira tentativa de se desenvolver uma
classificação de instrumentos musicais, que pudesse ter utilidade universal,
foi formulada por Victor-Charles Mahillon em 1880 e entre 1893 a 1922. Mahillon
foi curador da coleção de instrumentos musicais do conservatório real de música
em Bruxelas. Nos seus catálogos de instrumentos musicais, Mahillon baseou-se
nos conceitos dos antigos gregos, utilizando, como os teóricos europeus da
Idade Média, um diagrama em forma de árvore para exemplificar as ramificações
dos instrumentos musicais dentro de sua respectiva categoria. Mahillon avaliou
os instrumentos de acordo com o tipo de vibração do material, responsável pela
produção do som. O modelo apresentava algumas lacunas, visto que os dados sobre
os instrumentos europeus estavam incompletos, além de utilizados de maneira
incoerente, como no caso dos instrumentos de teclado e mecânicos. Uma outra
classificação proposta por Schaeffner em 1932 distingue entre duas classes de
instrumentos: aqueles compostos por substâncias fixas que vibram (subdivididos
em dilatáveis, flexíveis e não dilatáveis) e em colunas de ar em vibração.
O musicólogo Hans-Heinz Dräger apresentou uma
proposta de classificação de instrumentos, partindo de suas particularidades
musicais e levando em consideração as suas funções fisiológicas (Dräger, 1947).
Tentativa semelhante foi feita por Mantle Hood
(1971), cuja classificação inclui observações sobre práticas de execução
musical, funções musicais, ornamentos nos instrumentos assim como
particularidades ligadas a símbolos e a contextos rituais, além de dados sobre
os lutiers e construtores de instrumentos. No organograma que
desenvolveu a partir destes dados, Hood apoiou-se em uma linguagem simbólica,
inspirada na escrita de dança desenvolvida por Rudolf Laban. Esta escrita
possibilitou-lhe fixar graus de dificuldade (hardness scales) para
determinar volume, entonação, sonoridade, densidade e material do instrumento.
Além destas, existem outras classificações nativas
de instrumentos de música. Veja-se duas das mais importantes:
O sistema chinês: nesta cultura a ciência dos sons musicais
data da antigüidade. O sistema de classificação de instrumentos musicais é
condizente à visão que se tinha do mundo, incluindo forças cósmicas e os
elementos naturais. Por volta do século VIII a.C. a teoria musical chinesa
organizava os instrumentos musicais em oito categorias, que correspondiam aos
oito ventos. Além disso estas categorias eram também definidas pelo material
que fazia produzir o som (a seda das cordas, o couro dos tambores, o metal dos
sinos, a madeira das matracas e dos bastões raspados, a pedra dos litofones) e
pelo material que fechava a coluna de ar em vibração (bambu das flautas
tubulares, o barro das flautas globulares e a cabaça da caixa de ressonância do
órgão de boca). Esta divisão em oito categorias foi concebida para um
instrumentário bem-definido, o número finito de instrumentos musicais da
cultura chinesa.
O sistema indiano: O sistema clássico de
classificação dos instrumentos musicais indianos é apresentado em um dos muitos
tratados técnicos da literatura sânscrita, o Bharatiya-natya-shastra, ou seja,
"o ensino da arte dramática", atribuída a Bharata. Esta obra de
caráter enciclopédico, datada em torno do início da era cristã, trata do teatro
e das artes correlatas, em especial da poesia e da música. Instrumentos
musicais, designados de vadhya, são divididos em quatro classes,
determinadas pela maneira de vibração do respectivo componente do instrumento:
1. tata (de tan, esticar) vadhya,
correspondendo a corda;
2. avanadha (atado ou coberto) vadhya,
correspondendo a tambores de couro;
3. sushira (escavado ou furado) vadhia, correspondendo
às flautas, sopradas pelo músico; e
4. ghana vadhya (de han, percutir um
material sólido, em especial metal), formando a quarta categoria.
Estudiosos ocidentais viram-se inspirados neste
antigo sistema de quatro categorias de instrumentos musicais da cultura
indiana.
Estudos etnomusicológicos baseados em pesquisa de
campo revelaram inúmeras maneiras de classificar instrumentos musicais. Uma pesquisa
importante neste campo é aquela de Hugo Zemp (1978) entre os Are-are das ilhas
Solomon, na Oceania. Zemp verificou que os Are-are distinguem entre diferentes
tipos de "música de bambu", classificando seus instrumentos enquanto
"bambu percutido" e "bambu soprado", e cada um destes dois
grupos é subdividido em outras sub-categorias, em que se considera também o
fato do instrumento ser tocado de maneira individual ou em grupo.
Em "A Musicológica Kamayurá", Rafael José
de Menezes Bastos (1978) desvenda a noção kamayurá de som (ihu) e suas
subcategorias sonoras e musicais, conforme resumidas nas tabelas abaixo:
A classificação dos instrumentos de música kamayurá
deve ser vista paralelamente às concepções sonoras:
Há outros três critérios para a classificação de
instrumentos musicais kamayurá:
1. distingue-se entre instrumentos (menores) para aprender
e praticar e aqueles (maiores) para ensinar e tocar;
2. distingue-se os instrumentos de acordo com o seu
uso. Assim temos as tres categorias de instrumentos para cantar, para se
divertir e para a dança;
3. esta definição parte da idéia que um instrumento
produz uma música. Assim, os conjuntos de sopros, que executam músicas na
técnica de hocketus são classificados com um instrumento composto por
vários músicos. Distingue-se entre instrumentos unitários, duplos, triplos,
quadruplos, quintuplos etc.
Em alguns casos a classificação de grupos ou de
conjuntos musicais, como esta última vista para os Kamayurá, é bem mais
importante do que a consideração de instrumentos solistas. Assim os T'boli do
sul das Filipinas evitam a categorização de instrumentos isolados. Em
contrapartida conhecem um sistema complexo para descrever e classificar os seus
principais conjuntos rituais, sistema este ligado aos princípios religiosos e
de cosmologia nativa (Mora, 1987).
Em outras culturas o conjunto de instrumentos goza
do mesmo prestígio que os instrumentos isolados. É Hector Berlioz, que em 1843
amplia os ensinamentos sobre os instrumentos através de suas doutrinas sobre a
instrumentação, ou seja, a orquestração. É a orquestração que se torna critério
básico da composição sinfônica a partir de Berlioz até meados do século XX.
Desde o século XVIII orquestras e conjuntos
europeus são subdivididos em tres seções: cordas, sopros e percussão. A última
categoria, na verdade a menos prezada das três, é a única subdividida em dois
grupos: os idiofones, aqueles em que o material soa por si, e os membranofones,
ou seja, os tambores de pele. A musicologia ocidental distingue, portanto,
quatro famílias de instrumentos musicais. Estas quatro unidades formam o ponto
de partida de uma sistemática dos instrumentos, que, apesar de quase
centenária, representa, até hoje, uma referência importante no estudo
antropológico dos intrumentos musicias: a sistemática de Erich M. von
Hornbostel e Curt Sachs de 1914.
Sistemática
de Hornbostel e Sachs
Enquanto uma classificação procura ordenar os
elementos existentes de um conjunto de grandezas relacionadas, a sistemática
estabelece os critérios em que se encaixam estes elementos, formando a priori
¾ e não a posteriori, como a classificação ¾ um quadro total e de
validade geral, para todas as variantes possíveis, mesmo para aquelas ainda não
verificáveis na prática.
Foi com este intuito que os pesquisadores
Hornbostel e Sachs formularam o esboço de uma sistemática dos instrumentos
musicais. Como diretor do arquivo fonográfico de Berlim, Hornbostel tinha
acesso ao maior número de estilos musicais que se conhecia no seu tempo, e Curt
Sachs, diretor do museu de instrumentos musicais da mesma cidade, profundo
conhecedor, portanto, da problemática de se organizar e classificar
instrumentos de música, era parceiro ideal nesta empreitada. A sistemática dos
instrumentos musicais formulada por Hornbostel e Sachs leva como subtítulo a
manifestação de humildade dos dois musicólogos diante da tarefa por eles
assumida: "Ein Versuch" ("uma tentativa"). Não obstante, a
sistemática de Hornbostel e Sachs permanece, até hoje, uma das obras mais
consistentes, mais citadas e mais consultadas da etnomusicologia.
1. Idiofones: denominam-se idiofones
aqueles instrumentos cujo material soa por si: são os sinos, os chocalhos, os
gongos, os paus-de-chuva, as marimbas etc. Idiofones estão presentes em todas
as culturas. A sistemática aponta para oito níveis de subdivisão dos
instrumentos, que é definida numericamente na frente de cada categoria.
A seguir são apenas reproduzidas as principais
categorias dentro das quatro famílias de instrumentos musicais.
11 Idiofones de percussão
111 Idiofones de percussão direta
111.1 Idiofones de entrechoque ou matracas (clave,
castanhetas, pratos)
111.2 Idiofones percutidos (triangulo, xilofone,
trocano, gongos, sinos)
112 Idiofones de percussão indireta
112.1 Idiofones de agitar ou chocalhos
112.2 Idiofones raspados (raspador, reco-reco)
112.3 Idiofones rasgados ou puxados (arco de
caboclinho)
12 Idiofones dedilhados
121 Inserido em aro
122 Em forma de tablado ou pente
13 Idiofones de fricção
131 Bastões de fricção
132 Placa de fricção
133 Recipiente de fricção (idiofone globular de
fricção)
14 Idiofones aeólicos (soprados)
141 Bastões aeólicos
142 Placas aeólicas
2. Membranofones: os tambores que são percutidos
sobre uma pele de animal ou sintética são os membranofones. É uma membrana que
entra em vibração e assim é responsável pelos sons emitidos. Há um grande
número de formas diferentes de tambores. O seu corpo e a maneira como são
fixadas as peles denotam sua origem e seu universo cultural.
21 Tambores de percussão
211 Tambores percutidos diretamente
211.1 Tímpanos (em forma de tacho)
211.2 Tambores tubulares
211.21 Tambor cilíndrico (crivador, cupiúba,
macaco, ilú)
211.22 Tambores em forma de barrica (atabaque,
batá)
211.23 Tambores em forma de cone duplo
211.24 Tambores em forma de ampulheta
211.25 Tambores em forma de cone (timbal)
211.26 Tambores em forma de taça (darabuka)
211.3 Tambores de pele emoldurada (caixa, pandeiro,
adufe)
212 Tambor de chocalho
22 Tambores dedilhados ou rasgados
23 Tambores de fricção
24 Mirlitons (tambores cantados)
3. Cordofones: o grupo dos instrumentos de
corda (cordofones) inclui representantes variados como o berimbau ou então o
piano de cauda. As cordas podem ser dedilhadas, percutidas ou colocadas em
vibração com um arco. São os instrumentos de grandes linhas evolutivas que
podem ser retraçadas através de milhares de anos e por muitos espaços
culturais.
31 Cordofones simples, ou cítaras
311 Cítaras de bastão
311.1 Arcos musicais (berimbau de barriga,
urucungo)
311.2 Bastões musicais
312 Cítaras tubulares (Madagascar)
313 Cítaras compostas (vários tubos)
314 Cítaras retas ou em tablado
315 Cítaras de gamela ou abauladas
316 Cítaras de moldura
32 Cordofones compostos (com caixa de ressonância)
321 Alaúdes (o nível da cordas mantém-se paralelo à
caixa de ressonância)
321.1 Alaúde de arco (nsambi)
321.2 Lira (as cordas são mantidas por dois
braços no mesmo nível da caixa de ressonância)
321.3 Alaúdes de cabo, bastão ou de braço (saz, ud,
viola, violino)
322 Harpas (as cordas estão dispostas de forma
perpendicular à caixa de ressonância)
323 Alaúdes-harpa (cora) (as cordas estão dispostas
de forma perpendicular à caixa de ressonância, ao mesmo tempo a configuração do
instrumento corresponde ao alaúde)
4. Aerofones: os instrumentos de sopro são
aqueles que apresentam a maior variedade em tamanho e timbres: desde o pequeno
apito infantil até o órgão composto por milhares de tubos e centenas de
registros, todos têm em comum a coluna de ar que entra em vibração mediante o
sopro, produzindo sonoridade. Há culturas em que os sopros dominam, chegando
mesmo a excluir os instrumentos de corda.
41 Aerofones independentes (livres)
411 Aerofones de desvio (chicote)
412 Aerofones de interrupção (corrente de ar é
interrompida periodicamente)
412.1 Aerofones de interrupção auto-soantes ou
lingüetas (gaita de boca)
412.2 Aerofones de interrupção não auto-soantes
(zunidor)
413 Aerofones explosivos
42 Instrumentos de sopro (aerofones propriamente
dito)
421 Aerofones de gume ou flautas
421.1 Flautas sem aeroduto (flauta transversal,
ocarina, ney, Turquia)
421.2 Flautas de bisel, ou com aeroduto (pequena
fenda conduz o ar de encontro com um gume, que faz o ar entrar em vibração
dentro do corpo da flauta)
421.21 Flautas com aeroduto externo (uruá, Xingu)
421.22 Flautas com aeroduto interno (flauta doce)
422 Palhetas
422.1 Oboés (corrente de ar passa por palheta
dupla)
422.2 Clarinetas (corrente de ar passa por palheta
simples)
423 Trompetes (corrente de ar entra em vibração
através dos lábios do tocador)
423.1 Trompetes naturais (talumbeta, Moçambique)
423.2 Trompetes cromáticos (trompa, trombone,
piston)
A sistemática dos instrumentos musicais, conforme
acima reproduzida de forma sintetizada dentro do sistema de Hornbostel e Sachs,
já demonstra a complexidade do assunto. Apesar da importância dos sistemas de
classificação nativos, convencionou-se utilizar a sistemática de Hornbostel e
Sachs para efeitos de comunicação e de descrição interdisciplinar e mesmo
intercultural. Isso, no entanto, não elimina o fato de muitas culturas exigirem
uma adaptação da sistemática exposta. A pesquisa de campo é que melhor pode
levantar e buscar caminhos para solucionar os respectivos problemas.
Coda
Pincelados alguns campos de pesquisa
etnomusicológica, é preciso concluir constatando que vários outros domínios
ainda poderiam ter sido comentados: música e cultura (Nettln, 1983), música e
história (Veiga, 198 ), música e estruturas sociais, música e mídias, música e
mercado, música e identidade (Reily, 1992), música e poder, música e política,
teatro e dança, música e meio ambiente, música e gender studies (Herndon
& Ziegler, 1990), música e religiosidade, música e trabalho acústico
(Araújo, 1999), festivais de música, música e o diálogo intercultural, produção
musical, World Music (Broughton, 1994) etc.
O conhecimento que a disseminação de "músicas
de todo o mundo em todo o mundo" trouxe para a ampliação do interesse, mas
também para o surgimento de um mercado próprio e cada vez mais crescente de World
Music não só deve muito à etnomusicologia, como também aumentou o campo de
atuação dos especialistas na área. A importância do enfoque antropológico sobre
a música se dá justamente quando ele consegue quebrar idéias estreitas do
fenômeno musical, alertando, inclusive, para posturas provincianas ¾ para não
dizer etnocêntricas e preconceituosas ¾ em relação a práticas musicais de
outros povos, e mesmo de outros grupos sociais dentro do próprio país.
O paradigma que infalivelmente surge no contexto
antropológico da música será sempre sonoro: ouvir e aprender a ouvir a
sonoridade dos outros significa entendê-los melhor, da mesma forma que entender
as sonoridades alheias vai fazer com que entendamos melhor o nosso meio
ambiente sonoro também, reconhecendo e respeitando as alteridas. O grande
Mestre Vavá de Santo Amaro da Purificação (1937-1990), a quem devo muito se, de
alguma forma, consegui de fato ampliar a percepção sonora que tinha do mundo
antes de iniciar meus trabalhos de campo, comentou certa vez, depois de ouvir
atentamente a uma gravação de um arco musical africano que lhe trouxe de
Angola:
Prá eles lá (em Angola) é gostoso, mas prá gente
aqui não presta (na capoeira), assim como o berimbau nosso lá, eles vão ver
qualquer coisa (....) é, menino, não é mole não (...) cada lugar tem o seu
jeito.
Notas
1
Uma forma alternativa de registro em campo seria entregar a filmadora ou o
gravador a membros da comunidade cuja cultura está sendo estudada e deixar que
eles conduzam as gravações. Este seria um processo que transcende o trabalho de
registro em campo sob controle do pesquisador, levando, porém, a resultados que
podem complementar as mencionadas três formas básicas de gravação em campo.
2
No caso do Brasil veja-se por exemplo as "caravanas culturais"
enviadas ao exterior pelo governo Kubitschek, ou então, com o apoio do Governo
de Pernambuco, o chamado "vôo do frevo", recentemente o "vôo do
forró", iniciativa para divulgar a música do estado na Europa.
3
Estes últimos motivos (displicência, desinteresse e descuido) provavelmente são
responsáveis por mais destruição do que mesmo as guerras. Exemplo disto é o
fato dos ca. 30 mil cilindros de cera e os outros suportes de áudio do Arquivo
Fonográfico de Berlim terem sido evacuados do Museu Etnográfico durante a II
Guerra. Hoje encontram-se, com pouquíssimas lacunas, de volta ao museu desde
1990, depois de uma odisséia por porões de mosteiros, que após 1945 se tornaram
poloneses, por departamentos públicos da antiga União Soviética e da Alemanha
Oriental (Simon, 2000).
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Recebido em maio de 2001.
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